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A fotografia que não agradou a García Márquez, mas acabou na contracapa de ‘Cem Anos de Solidão’

O mexicano Rodrigo Moya revive uma icônica sessão fotográfica que expõe uma das facetas mais íntimas do Nobel colombiano

Folha de contatos da sessão fotográfica de García Márquez em 1966
Folha de contatos da sessão fotográfica de García Márquez em 1966Rodrigo Moya
Elías Camhaji

Gabriel García Márquez tinha pressa. Sentou-se em um dos sofás e explicou que precisava tirar uma foto para um livro muito importante para ele. "Quando o conheci, não simpatizei com ele", recorda Rodrigo Moya (Medellín, 1934), o fotógrafo que se encarregou do serviço. A sessão de fotos foi feita em 29 de novembro de 1966, seis meses antes do lançamento de Cem Anos de Solidão. As imagens foram rejeitadas no início, mas depois chegaram à contracapa das primeiras edições internacionais deste clássico da literatura latino-americana e se tornaram um dos testemunhos gráficos mais emblemáticos de García Márquez. "Toda fotografia tem uma história", diz Moya antes de mergulhar em um oceano de 40.000 fotos, o mar de seu legado. Isto é o que aconteceu há 52 anos.

García Márquez chegou às 11 da manhã no apartamento de Moya, nos edifícios Condesa, no centro da Cidade do México. Estava sério, a câmera o deixava nervoso, diz Moya. "Como você quer a foto?", lhe perguntou. O fotógrafo conhecera Gabo na casa de Alicia, sua mãe, uma bela imigrante antioquenha que matava a fome de García Márquez e de outros artistas e exilados sul-americanos na base de sobrebarriga, sopa de patacones e outras delícias da culinária colombiana. "Faça-me um retrato à sua maneira", respondeu o escritor.

Rodrigo Moya segura um negativo de García Márquez
Rodrigo Moya segura um negativo de García MárquezA. B.

Moya pegou a câmera, uma Mamiya com lente dupla e, sem iluminação artificial, começou a fotografar até esgotar dois rolos de 12 imagens cada em uma hora e meia de trabalho. "Deu muito trabalho movê-lo, ficava sentado o tempo todo", conta o fotógrafo entre risos. Gabo já era conhecido, mas tinha um jeito austero. Vestia o paletó pé-de-galinha que quase sempre usava, acendeu um cigarro e bebia um café após o outro, enquanto batia papo com Guillermo Angulo, um amigo comum colombiano e o professor que ensinou a Moya a arte da fotografia. Angulo pegou a câmera e disparou algumas vezes, mas, como não sabia usar muito bem esse modelo, o rosto de García Márquez saiu cortado. As imagens não teriam sobrevivido na guilhotina das câmeras digitais, mas era outro mundo: sem o botão de apagar, nem tela para pré-visualizações nem photoshop.

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Gabo pegou a folha de contato e começou a escolher. Uma foto em que aparecia de olhos fechados enquanto exalava a fumaça do cigarro foi sentenciada para sempre com um "NÃO", em letras garrafais. "Falava pouco, mas era preciso", diz Moya, enquanto passa o dedo indicador sobre a impressão em nitrato de prata sobre gelatina. Duas fotos foram as preferidas de García Márquez e em ambas aparece com um olhar icônico, quase cúmplice, como a de um garoto de 39 anos que acabava de cometer uma travessura. “Quatro cópias”, apontou com a caneta.

A imagem de García Márquez elegida por Penguin
A imagem de García Márquez elegida por PenguinR. Moya

A última palavra, no entanto, era a do editor, o pintor hispano-mexicano Vicente Rojo, que descartou todas as fotos. "Eu via Rojo como um inimigo da fotografia", disse Moya, em uma queixa sem rancor. "Mudava o enquadramento, punha pintura nas fotos, colocava-as de ponta cabeça, era uma loucura", relembra o fotógrafo. No final, a Penguin escolheu uma das imagens, que havia passado desapercebida por Gabo, Rojo e Moya, para a contracapa da edição em inglês. "Eu nunca soube por quê, suponho que seja coisa de editores, até hoje não gosto dessa foto", reconhece Moya, encolhendo os ombros. A folha de contato rabiscada voltará a vir a público neste 9 de maio em um evento da casa de leilões Morton, no qual se espera que obtenha lances entre 5.000 e 8.000 dólares (20.000 e 32.000 reais).

"O fotógrafo tem que capturar a essência de uma pessoa e para isso é essencial que o fotógrafo tenha caráter", explica Moya sobre sua visão da fotografia, que se reflete em dezenas de ensaios e um arquivo ao qual sua mulher, Susan, e ele dedicaram os últimos 21 anos. Em um mundo em que os fotógrafos eram "entes de segunda categoria", o jovem Moya, de 23 anos, desafiava os retratados, olhava-os nos olhos e não hesitava em castigá-los com uma imagem ruim. "Se eu detestasse o personagem, procurava ferrá-lo um pouco, não poderia fazer uma foto neutra que deixasse de lado as minhas convicções", resume, sem rodeios.

Moya, que nasceu na Colômbia por um capricho do destino, marcou uma época na fotografia mexicana, mas rejeita o rótulo de artista. Seu olhar se forjou em uma cruzada contra a indiferença, do ângulo de um homem de esquerda, influenciado como filho de um renomado fotógrafo e com a obsessão de um apaixonado colecionador de riquezas marinhas.

Por sua lente passaram os tripulantes do Granma; um encontro sem precedentes entre David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera, que não se davam bem; John F. Kennedy, Lázaro Cárdenas, Carlos Fuentes e María Félix; bêbados anônimos afundados em uma cantina, bandidos de olhos penetrantes e meninas que sonham diante de uma loja de brinquedos. Milhares e milhares de histórias, como a de seu amigo: um novo escritor colombiano que mordeu o lábio e sorriu timidamente na véspera da publicação de sua obra-prima.

O olho roxo de Gabo

Dez anos depois da foto para Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez bateu mais uma vez na porta da casa de Rodrigo Moya. Mario Vargas Llosa lhe havia esmagado o olho esquerdo durante a estreia de Os Sobreviventes dos Andes, o filme de 1976, e ele queria ser fotografado assim. "Eu lhe disse: 'Nossa, te deram uma porrada filha da mãe', só assim pude lhe arrancar um sorriso, estava muito deprimido", diz Moya.

Elena Poniatowska, diz o fotógrafo, saiu da première para lhe conseguir um pedaço de carne para reduzir a inflamação, mas não teve êxito. Nenhum dos dois ganhadores do Prêmio Nobel envolvidos quis dar detalhes sobre a briga. Nem naquele momento nem mais de 40 anos depois. "Meche, a esposa de Gabo, nos disse que ele tinha se aproximado para abraçá-lo, mas Vargas Llosa era um imbecil ciumento, e não soubemos nada mais", diz Moya. Oito fotos serviram como testemunho e ainda guardam o segredo

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