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O trauma de Anita Hill entra na disputa de Joe Biden pela Casa Branca

O ex-vice de Barack Obama presidiu em 1991 uma audiência por assédio sexual que se transformou em paradigma do linchamento da denunciante. 28 anos depois, o democrata telefonou para a mulher dizendo que lamentava o episódio

Amanda Mars
Anita Hill, no dia 12 de outubro de 1991, ante o comitê judicial do Senado dos Estados Unidos.
Anita Hill, no dia 12 de outubro de 1991, ante o comitê judicial do Senado dos Estados Unidos.JENNIFER LAW (AFP)
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- A senhora é uma mulher rejeitada?

– Tem complexo de mártir?

– Acha justo perguntar ao juiz Thomas sobre fatos ocorridos há oito ou dez anos?

– A senhora afirmou que a pergunta mais embaraçosa tinha a ver – não é muito ruim – com mulheres de seios grandes. Essa é uma palavra que usamos o tempo todo. É isso o mais embaraçoso que o juiz Thomas lhe disse?

Essas são algumas das perguntas que a advogada Anita Hill precisou responder em 11 de outubro de 1991, perante a Comissão de Justiça do Senado dos Estados Unidos, que abordava suas acusações de assédio sexual contra o juiz Clarence Thomas, nomeado pelo presidente republicano George Bush pai. Após a sabatina, Thomas seria confirmado como novo membro vitalício da Corte Suprema, a mais alta instância judicial do país. O juiz havia sido supervisor de Hill, uma professora de Direito na época com 35 anos, quando ela trabalhava no Departamento de Educação e na Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego. Ela relatou que tinha sido objeto de assédio sexual constante por parte dele: Thomas a pressionava para que saíssem juntos, falava de pornografia com ela e se referia ao tamanho de seu pênis, entre outras coisas.

Aquela sessão no Senado, realizada por um painel formado só por homens brancos, transformou-se no paradigma de interrogatório machista e de culpabilização da suposta vítima nos EUA. Não só pelas perguntas. Permitiu-se, por exemplo, o depoimento de um amigo do juiz e conhecido de Hill – sem a investigação prévia sobre o homem, como era habitualmente exigido. Ele acusou a advogada de ser “instável” e de “não lidar bem com a rejeição.”

Por outro lado, não foi chamada a declarar (apesar de formalmente convocada) Angela Wright, uma antiga funcionária da Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego, que também acusava o juiz de tratamento inapropriado. A credibilidade de Wright havia sido questionada previamente por senadores republicanos. A imagem mais contundente daquela jornada foi oferecida provavelmente pelo político conservador Orrin Hatch, que levou um exemplar do romance O Exorcista à sabatina. Ele leu fragmentos em voz alta para insinuar que Anita Hill havia se inspirado no livro para contar sua história.

Thomas, que sempre negou as acusações, foi confirmado como novo juiz da Suprema Corte. Hatch, o senador do livro O Exorcista, ainda é membro da Comissão de Justiça do Senado. E o presidente do organismo, ou seja, o homem que presidiu a sessão e permitiu algumas perguntas e insinuações corrosivas contra Hill, acaba de anunciar sua intenção de se tornar o próximo presidente dos EUA. É Joe Biden.

O pré-candidato democrata favorito nas pesquisas recebeu a vista de um velho fantasma: o de Anita Hill, transformada no símbolo da luta contra o assédio sexual nos EUA. O veterano político, de 76 anos, votou contra Thomas. Esse é só um episódio da longa carreira de Biden, o vice-presidente da era Obama (2009-2017) e senador por Delaware desde 1972. Mas na era do #MeToo, a ferida daquela audiência continua aberta.

Muito consciente de que isso aconteceria, Biden telefonou semanas atrás para Anita Hill e disse que sentia muito pelo que havia acontecido. Ele já havia se referido ao assunto em público, em várias ocasiões, mas não quis pedir perdão diretamente. Apenas lamentou o tom daquela sessão. O telefonema pessoal para Hill demorou 28 anos e foi revelado por uma porta-voz do vice-presidente na tarde da última quinta-feira, horas depois de Biden anunciar sua candidatura às primárias democratas.

Tampouco foi uma desculpa por sua atuação, como ficou claro no dia seguinte, sexta-feira de manhã, numa entrevista à rede ABC. A apresentadora perguntou a Biden se ele não considerava que deveria pedir desculpas a Hill pelo modo como a havia tratado. “Lamento pela forma como ela foi tratada”, disse ele, antes de completar: “Se você olhar o que eu disse e não disse, não creio que a tenha tratado mal.” “Eu gostaria”, insistiu “que tivéssemos encontrado uma maneira melhor de fazer isso. Fiz tudo ao meu alcance para fazer o que eu achava que estava dentro das regras para poder parar as coisas.”

Hill, que leciona Política Social e Direito na Universidade de Brandeis, não se contentou plenamente com o telefonema do pré-candidato à presidência. Em entrevista ao The New York Times, afirmou: “Não posso ficar satisfeita ao ouvi-lo dizer simplesmente: ‘Sinto pelo que aconteceu com você’. Estarei satisfeita quando souber que há uma mudança real, uma verdadeira responsabilização e um verdadeiro propósito.”

O trauma de Hill já tinha vindo à tona em 2017, quando teve início uma onda de protestos contra o assédio sexual. E voltou a retumbar em outubro passado, em raiz das acusações da professora universitária Christine Blasey Ford contra o juiz Brett Kavanaugh, também nomeado para a Suprema Corte (quase um déjà vu), mas o interrogatório acabou ficando muito distante daquela sessão do começo dos anos noventa, submetida a padrões muito diferentes dos atuais.

É essa também a ideia que aparece em outras explicações de Biden, que tem 76 anos e quase meio século de trabalho na política de Washington, com toda a bagagem que isso implica, para o bem ou para o mal. No final de março, quando sua candidatura já era tida como certa, duas mulheres o acusaram de tratá-las de maneira invasiva em atos públicos e fazê-las se sentirem incomodadas. Lucy Flores, uma ex-congressista de Nevada, disse que, durante um comício de 2014, o veterano democrata se aproximou dela por trás no palco e a beijou na cabeça. Outra mulher fez uma acusação similar. Muitos vídeos mostram que Biden costuma abraçar e beijar seus interlocutores. Após dias de polêmica, ele acabou publicando um vídeo se desculpando. “As normas sociais estão mudando. Eu entendo, e escutei o que essas mulheres estão dizendo”, disse. “Sempre tentei me conectar com as pessoas, mas serei mais consciente na hora de respeitar os espaços pessoais.” Nancy Pelosi, outra veterana do Partido Democrata e presidenta da Câmara dos Representantes, afirmou: “Biden deve compreender que o espaço físico é importante para as pessoas no mundo de hoje, e a chave é como recebem [esses atos], não a sua intenção.”

Biden é considerado um centrista entre os cerca de 20 aspirantes democratas à candidatura para derrotar Donald Trump. Ele lidera as pesquisas, seguido por um esquerdista do calibre de Bernie Sanders, o que deixa claro que o eleitor democrata está dividido sobre qual é a melhor fórmula para recuperar a Casa Branca. Em março passado, também prevendo esse debate, o vice de Barack Obama declarou num ato público: “Me disseram que a nova esquerda me critica. Tenho o histórico mais progressista que o de todos os postulantes.” Para o bem ou para o mal, Biden não viaja desprevenido.

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