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A vida de Assange segundo a equipe que o vigiava

De 2012 a 2017, uma empresa de segurança espanhola se encarregou de proteger o hóspede mais incômodo do mundo em seu asilo na Embaixada do Equador em Londres

Captura de um vídeo de Julian Assange, com um skate, e sua colaboradora Stella Morris na embaixada equatoriana em Londres. O vídeo mostra vários momentos de sua permanência na missão diplomática.Vídeo: EL PAÍS
José Manuel Abad Liñán

Segurado por três policiais e aos gritos, um Julian Assange desarrumado e envelhecido pôs os pés na rua na quinta-feira pela primeira vez em sete anos. Abandonou à força o edifício da Embaixada do Equador em Londres, onde tinha se entrincheirado para evitar ser preso. Um cenário que Assange, sua equipe, o pessoal diplomático e a equipe de segurança se viram obrigados a compartilhar em uma convivência frequentemente tensa nos 300 metros quadrados da embaixada. Várias câmeras registravam seus movimentos no refúgio. Este é o relato de seu dia a dia, construído a partir dos testemunhos de uma dúzia de guardas de segurança — às ordens de uma empresa espanhola — encarregados de proteger a missão diplomática até 2017.

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A vida de um encanador valenciano cruzou pela segunda vez com a de Julian Assange em 2016, quando recebeu um telefonema em que uma voz conhecida o encarregava de uma tarefa especial. Tinha de viajar do povoado valenciano onde vivia até a capital britânica para consertar um entupimento. Um entupimento no banheiro do ciberativista mais procurado do mundo, na Embaixada do Equador em Londres. Naquela ocasião, já fazia quatro anos que estava refugiado na missão diplomática o jornalista e hacker nascido na Austrália em 1971, fundador do Wikileaks, a organização que em 2010 vazou para a imprensa um grande volume de documentos e centenas de milhares de comunicações internas dos EUA sobre as guerras no Iraque e no Afeganistão.

Meses antes de se refugiar na embaixada, Assange tinha perdido um recurso para evitar ser extraditado para a Suécia, que havia emitido um mandado de prisão internacional contra ele por supostos casos de estupro e abusos sexuais. Já na embaixada, o Equador lhe concedeu primeiro o asilo e depois a nacionalidade. Mas, assim que atravessasse a porta e pisasse em solo britânico, seria detido. O medo de ser espionado passa a ser uma obsessão tanto de Assange como daqueles que o rodeiam na embaixada.

O encanador foi chamado pelos guardas da segurança privada da missão diplomática. Precisavam que o conserto fosse feito por alguém de confiança, e o conheciam porque ele havia trabalhado quatro meses e meio com eles como vigilante, um ano antes. Temiam que, com o pretexto de consertar o problema no banheiro, a espionagem britânica se infiltrasse na embaixada. A conta pelos quatro dias de conserto é tão incomum quanto o encargo: 4.000 euros (17.580 reais). Assange já podia voltar a abrir a torneira do chuveiro. Ele fazia isso para impedir possíveis escutas, como contou aos guardas — que não revelam seus nomes porque se comprometeram com sua empresa a manter a confidencialidade.

Esse episódio revela até que ponto um incidente do dia a dia se torna uma complicação se afeta o hóspede mais incômodo do mundo, perseguido naquele momento não só pelo Reino Unido, mas também pela Suécia. “Hóspede” é o termo com que se referem a Assange os relatórios escritos pelos guardas de segurança; coloquialmente, alguns o chamam de Juli.

Mas como é que guardas espanhóis chegaram a trabalhar na Embaixada do Equador em Londres? São funcionários da UC Global, uma empresa de defesa e segurança privada registrada como Undercover Global S. L. em Puerto Real (Cádiz). Um de seus proprietários é David Morales, mergulhador e fuzileiro naval, que divide a tarefa de proteger a missão diplomática com a empresa Blue Cell, cujo dono tem bons contatos com o Governo do Equador, presidido na época por Rafael Correa.

Morales contratava ex-militares e ex-escoltas, mas também pessoas com menos qualificação. Oferecia-lhes 2.000 euros (8.790 reais) por mês, mais as despesas. Alguns eram empregados por poucas semanas. Outros, por anos. A UC Global trabalhou na embaixada desde pouco depois da chegada de Assange até 2017, quando perdeu o apoio do Equador após a eleição de Lenín Moreno como presidente.

“A embaixada ficou cheia de câmeras, tanto internas como externas”, diz Txema Guijarro, hoje deputado do Podemos e então assessor da chancelaria equatoriana, enviado a Londres para ajudar a administrar o problema diplomático que significava dar abrigo ao fundador do Wikileaks.

Pouco depois da chegada do ciberativista, “a embaixada ficou cheia de câmeras”, diz Txema Guijarro, assessor da chancelaria do Equador

“Assange tinha sempre a obsessão de que essas imagens pudessem ser hackeadas e de que, portanto, nós mesmos estivéssemos fazendo o trabalho de contraespionagem para os britânicos”, lembra o ex-assessor. Foram instalados monitores, um gravador de vídeo e uma equipe autônoma de alimentação em uma sala de arquivos. Os guardas batizam o lugar de “batcaverna”, como o QG subterrâneo do Batman. A instalação permite, segundo o responsável por ela, que o sinal audiovisual seja acompanhado em tempo real em Quito.

O serviço de segurança não era pago nem pela embaixada nem pelo Ministério de Relações Exteriores do Equador, mas pela Senain, a Secretaria Nacional de Inteligência, afirmou o embaixador equatoriano em um documento interno enviado a um membro de seu Governo, ao qual o EL PAÍS teve acesso. Criado por Correa em 2009, esse organismo foi acusado de espionar a oposição e acabou sendo desmantelado por seu sucessor, Lenín Moreno. Uma investigação do jornal The Guardian calculou em 5 milhões de dólares (19,4 milhões de reais) o custo da operação para proteger — e vigiar — Assange. Na quarta-feira, um dia antes de sua detenção, o Wikileaks denunciou a descoberta do que considera “uma enorme operação de espionagem” contra seu fundador, mas um de seus advogados, Aitor Martínez, afirma que essa espionagem ocorreu na época de Lenín Moreno, quando a UC Global já não prestava serviço ao Equador.

Pouco depois de chegar à embaixada, em 2012, Assange começa a desconfiar e pede que o pessoal diplomático permita que ele trabalhe com os equipamentos de gravação. Quer ver quem o incomoda de madrugada jogando, da rua, pequenos objetos contra as janelas da embaixada. Ele recebe a autorização, mas dias depois, quando está usando o equipamento na batcaverna, o guarda de segurança de plantão o impede de continuar. Ele discutem e lutam. É um dos primeiros desentendimentos.

Os diplomatas viam com desconfiança o ir e vir de centenas de visitas

O pessoal da embaixada também desconfia de Assange. Em novembro de 2014, um agente da UC Global escreve um relatório para o embaixador na época, Juan Falconí, no qual afirma que naquele dia encontrou uma maleta com um dispositivo de escuta. Diz que foi visto em uma sala ocupada por Assange. “Suspeita-se que ele realize ações de escuta contra o pessoal diplomático, neste caso em particular contra o embaixador e seu entorno, a fim de obter informação privilegiada que possa ser utilizada para manter seu status na embaixada”, assinala o relatório.

Falconí conta ao EL PAÍS que, assim que soube da descoberta, avisou a chancelaria e decidiu “separar a linha de Internet de Assange da linha da embaixada”. Quando pediu explicações a Assange, este “deu evasivas”, recorda o diplomata.

Nesse ambiente de suspeitas mútuas e rodeado de seguranças e câmeras, Assange busca privacidade. Levanta-se tarde para trabalhar em seus computadores e se deita de madrugada. Assim, não cruza com o pessoal diplomático. Embora não possa sair, recebe centenas de visitas. Antes de cada uma, é necessário fazer uma solicitação com dois dias de antecedência, e o pedido fica registrado. O embaixador é o responsável por aprovar cada visita. Entram na embaixada celebridades como Lady Gaga, o ator John Cusack, Yoko Ono e seu filho Sean Lennon e a estilista Vivienne Westwood, que costumava levar comida para Julian Assange. Ele agradece em especial a possibilidade de comer carne e beber vinho tinto. Mas o ir e vir de estranhos altera a rotina da missão diplomática. “Os funcionários e o corpo diplomático estavam cansados de reportagens e entrevistas, e de que Assange e seu pessoal usassem a sala de reuniões”, diz um segurança.

Os guardas registram em relatórios os nomes das visitas, e os mandam periodicamente à sua empresa, a UC Global. Eles os enviam para uma pasta de rascunhos em contas simples do Hotmail. Comentam entre si a falta de cuidado com informações delicadas. Afirmam que várias vezes são extraviados relatórios. Têm de refazê-los e mandá-los de novo.

À medida que passa o tempo e o confinamento se torna crônico, a angústia de Assange aumenta. Certa vez, os agentes tiveram de entrar em seu quarto para tranquilizá-lo.

Com o passar dos anos, a visão piorou e começou a arrastar os pés ao caminhar

“A situação em que Assange está não é fácil por seu estado emocional. Ao longo de toda a trajetória, passou por diferentes etapas nas quais podia estar mais ou menos de acordo com os procedimentos [de segurança e vigilância], mas essa é uma área que não corresponde a ele, e sim ao cliente”, afirma David Morales, o dono da empresa de vigilância.

Não é só seu estado de ânimo que se deteriora. Também sofre problemas físicos. Com o passar dos anos, arrasta os pés ao andar e tem problemas de visão devido ao confinamento. Não fixa bem o olhar. O médico lhe recomenda olhar ao longe e a embaixada lhe dá outro quarto, do qual se se vê a rua. A mesma em que pisou na quinta-feira, à força, depois de 2.494 dias.

Skate na embaixada e reclamação por falta de higiene

Nos cinco anos em que os guardas de segurança consultados vigiaram Julian Assange, observaram nele comportamentos que consideraram excêntricos. O fundador do Wikileaks fez da embaixada seu refúgio e quartel-general, mas também sua casa. Os seguranças contam que Assange dava entrevistas de cueca à televisão, vestido só da cintura para cima, a parte que aparecia na tela. Descuida-se e deixa o banheiro sujo depois de usá-lo. Alguns funcionários se queixam disso para o embaixador na época, Juan Falconí. Outros trabalhadores tiram fotos das ofensas. A cozinha usada por Assange é pequena e não tem exaustor. Embora ele recorra muito ao micro-ondas, às vezes também usa um fogão elétrico para cozinhar. Isso incomoda os funcionários da embaixada. Em algumas ocasiões, coincidindo com vazamentos importantes do Wikileaks, os triunfos são motivo de grande celebração. Em outras, ele fica mais sozinho e, com sua inseparável colaboradora Stella Morris, passa o tempo andando de skate pela embaixada ou jogando bola em um corredor.

Às vezes, também coloca a equipe de segurança em apuros. Em uma festa de aniversário, uma amiga drag queen entra na embaixada. Um segurança fica furioso temendo que ela esconda algum objeto estranho debaixo de sua roupa.

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