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As imagens questionadoras de Harun Farocki

Artista alemão protagoniza mostra no IMS, em meio a debate sobre o papel da arte como crítica sociopolítica

'Interface' (1995), videoinstalação de Harun Farocki.
'Interface' (1995), videoinstalação de Harun Farocki. © Harun Farocki GbR

Nenhuma imagem é inocente. E isso é o que compromete, cada vez mais, nossa noção sobre o que são a verdade e a realidade. Essa é a principal mensagem da obra do artista e cineasta alemão Harun Farocki (1944-2014), que, desde a década de 1960 até o final da sua vida, produziu mais de 100 filmes e instalações de forte teor político, focados em analisar a produção de circulação de imagens na sociedade contemporânea, desde a fotografia até a computação gráfica e os sistemas de vigilância urbanos, como as câmeras de segurança. "A cidade hoje é tão racionalizada e regulada quanto um processo de produção. As imagens que hoje determinam o dia a dia da cidade são imagens de controle", afirmava Farocki. A partir deste sábado (16/03), o público do Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio de Janeiro poderá compartilhar as reflexões do artista na mostra Harun Farocki: quem é responsável?, que reunirá 15 de suas obras.

Com curadoria de Antje Ehmann, companheira e responsável pelo espólio do artista, em Berlim, e de Heloisa Espada, a exposição fica em cartaz até o dia 30 de junho e chega a São Paulo em setembro. Espada considera que o trabalho do alemão é especialmente relevante no contexto social e político do Brasil: "As pessoas estão se informando por memes, há uma cegueira muito grande em relação à imagem, o que nos leva, por exemplo à proliferação das fake news. As pessoas não entendem o que a imagem de fato está comunicando, muitas vezes subliminarmente".

Retrato de Harun Farocki, em 2009.
Retrato de Harun Farocki, em 2009.Markus J. Feger
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Um dos destaques da mostra —Frases de impacto, imagens de impacto. Uma conversa com Vilém Flusser— é uma videoinstalação que dialoga precisamente com esse debate. A obra reproduz uma conversa em 1986 entre Farocki e o filósofo Vilém Flusser (autor de A filosofia da Caixa Preta) em que ambos debatem a capa de um jornal sensacionalista com o grande retrato de uma mulher e a manchete em caixa alta. "Eles conversam sobre como são todos esses elementos, inclusive o texto, que formam a imagem e como todos eles se entrelaçam na leitura dela", explica a curadora. Farocki defendeu, ao longo da vida e em seu trabalho que é preciso preciso ter um olhar crítico, duvidar das imagens, entender a quem elas beneficiam para aprender a lê-las.

Nesse contexto, outro destaque da exposição é Contramúsica (2004) —inédita no Brasil— que reflete sobre o uso das câmeras de segurança pública nas cidades contemporâneas e o constante monitoramento dos cidadãos. Na obra, registros de câmeras de segurança são confrontados com cenas dos filmes Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov, e Berlim, sinfonia da metrópole, de Walter Ruttmann. "Tem uma relação direta com o que vivemos hoje. Foi algo que tivemos em conta para selecionar as obras que serão expostas no Rio, onde é muito forte o controle da cidade através de imagens. Quisemos criar uma iconografia com o que acontece no momento, como a intervenção federal na segurança [que terminou em dezembro] e o ressurgimento das forças armadas na esfera política, algo tão presentes no nosso cotidiano", diz Espada.

Hiperconexão

Apesar de ter falecido em 2014, aos 70 anos, antes do escândalo entre Facebook e Cambridge Analytica (coleta de dados pessoais de 87 milhões de usuários da rede social), Farocki trabalhava o conceito de hiperconexão e a importância de prestar atenção em imagens que, geralmente, não são consideradas como algo ameaçador. É o caso, por exemplo, das análises de dados. "Nossa relação com a fotografia está diretamente ligada com a realidade, mas não é o caso das imagens digitais. Por isso, é importante prestar atenção nas mensagens subliminares dessas informações", ressalta a curadora.

Para Espada, "os filmes-ensaios de Farocki têm se mostrado surpreendentemente atuais, sobretudo em sua crítica às fronteiras pouco nítidas entre ficção e realidade que caracterizam as mídias digitais. Na videoinstalação formada pela série de filmes Paralelo I, II, III e IV, última obra do artista, iniciada em 2012 e terminada em 2014, ele reflete sobre o hiper-realismo alcançado pela computação gráfica em jogos eletrônicos e sobre o protagonismo da violência nos games. Ele analisa a evolução técnica das animações desde os primeiros jogos, criados nos anos 1980, para em seguida questionar a artificialidade das imagens digitais e seu lugar na história do cinema: “Talvez as imagens de computador assumirão funções previamente desempenhadas pelos filmes. Talvez isso libere os filmes para outras funções”, pondera a voz da narradora.

As relações entre indústria cultural e violência aparecem também em Jogos sérios I-IV (2009-2010), que retrata o uso de videogames e animações computadorizadas no treinamento de soldados americanos para lutar nas guerras do Afeganistão e do Iraque. As seções de treinamento foram registradas pelo cineasta na Marine Corps Base 29 Palms, na Califórnia, em 2009. Esse trabalho também aborda a combinação entre computação gráfica e realidade virtual em programas utilizados pelas Forças Armadas americanas em sessões de terapia de veteranos de guerra com estresse pós-traumático. No trabalho, o artista analisa a violência que há por trás dessas imagens, além do processo de construção da memória da guerra.

Como diz Heloisa Espada, para quem gosta de arte que provoca a pensar e mostra a complexidade da realidade e das conexões entre as coisas, Farocki é um prato cheio.

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