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Ex-advogado põe Trump contra parede em demolidor depoimento no Congresso

Em audiência no Congresso, Michael Cohen acusa presidente de “racista, vigarista e trapaceiro”

Michael Cohen, que foi durante uma década advogado e faz-tudo de Donald Trump, lançou nesta quarta-feira no Congresso uma bomba de fragmentação contra o presidente dos Estados Unidos, com graves acusações de vários tipos, como que sabia de antemão da intenção do Wikileaks de boicotar a campanha de Hillary Clinton, ou que mandou pagar duas mulheres para silenciar supostas infidelidades durante a campanha, o que constituiria crime de financiamento ilícito. “É um racista, vigarista e trapaceiro”, disse sobre o presidente em uma audiência televisionada por todas as grandes redes e que pegou o republicano em plena cúpula com Kim Jong-un no Vietnã.

Cohen deixa o Comitê de Inteligência do Senado depois de prestar depoimento em 26 de fevereiro.
Cohen deixa o Comitê de Inteligência do Senado depois de prestar depoimento em 26 de fevereiro.Manuel Balce Ceneta (AP)

A cidade de Washington tomou esta quarta-feira como se toma esse tipo de evento, com bares abrindo mais cedo para acompanhar a audiência e coquetéis especiais batizados de “dedo-duro”, ou seja, Washington encarou com uma mistura de interesse e sarcasmo. O ex-advogado pessoal do presidente dos Estados Unidos está há várias horas no Capitólio acusando o presidente de pagamentos a atrizes pornôs, ameaças e traições, e lançando suspeitas de possíveis ligações do presidente com o Kremlin. Retratando-o, além disso, como uma espécie de Calígula caprichoso.

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“Estou envergonhado por ter escolhido participar do encobrimento dos atos ilícitos do senhor Trump em vez de ouvir a voz da minha consciência. Estou envergonhado porque sei o que o senhor Trump é. Ele é um racista. Ele é um vigarista. Ele é um trapaceiro. Era candidato presidencial quando soube que Roger Stone [ex-assessor de Trump] estava falando com Julian Assange sobre a publicação, por parte do Wikileaks, de e-mails do Comitê Nacional Democrata”, disse no início.

Cohen, de 52 anos, se vangloriou durante anos de ser quem lavava a roupa suja de Trump e, como também reconheceu na quarta-feira, fazia isso com ameaças quando a situação exigia. Teria sido, disse uma vez, “capaz de receber uma bala” para proteger o empresário nova-iorquino. Mas quando o FBI o pegou em 2018, decidiu colaborar e se declarou culpado de evasão fiscal, de mentir ao Congresso (em uma audiência anterior) e do crime de financiamento ilegal de campanha eleitoral pelo pagamento às supostas ex-amantes de Trump. Em 12 de dezembro foi condenado a três anos de prisão. Na ocasião implicou o presidente no crime de financiamento ilegal e nesta quarta-feira não apenas repetiu essa acusação, mas também ampliou o campo de tiro.

O vazamento dos e-mails pelo Wikileaks é considerado um dos maiores tentáculos da chamada trama russa, a campanha de propaganda e ciberataques que a justiça norte-americana atribui a Moscou para favorecer a vitória de Trump em detrimento de Hillary Clinton na eleição presidencial. Cohen testemunhou, segundo diz, uma conversa telefônica entre o empresário e Stone sobre esse assunto. Cohen também expressou suas “suspeitas” sobre a possível colaboração do círculo de Trump e o Governo russo nessa questão, afirmando, embora sem provas, que o magnata provavelmente sabia da reunião que seu filho mais velho, Donald Junior, teve com uma mulher que se apresentou como próxima do Kremlin e que prometeu roupa suja sobre a candidata democrata. O filho do presidente admitiu a reunião, mas diz que seu pai nunca soube.

Cohen — que acaba de ter seu registro de advogado cassado — diz que seu chefe lhe pediu pouco antes das eleições de novembro de 2016 que fizesse pagamentos a Stephanie Clifford — nome verdadeiro da atriz pornô Stormy Daniels — e à modelo da Playboy Karen McDougal, que afirmam ter mantido relações sexuais com Trump em 2006 e 2007, quando já era casado com a primeira-dama, Melania. Especificamente, Cohen pagou 130.000 dólares a Clifford e 150.000 a McDougal. Como o objetivo era proteger a imagem do então candidato, o fato constitui delito de financiamento ilícito por não ser declarado. “Ele me pediu para mentir para a esposa, o que eu fiz, e é um dos meus maiores arrependimentos. Ela é uma pessoa boa e amável. Eu a respeito muito e ela não merecia isso”, disse. Cohen afirma que Trump mandou que ele mentisse neste e em outros assuntos que foram sendo investigados posteriormente.

Seu explosivo depoimento ao Comitê de Supervisão e Reforma é possível por obra e graça da nova maioria democrata na Câmara dos Representantes, em uma amostra de todos os problemas que esse novo contrapoder em Washington pode criar ao presidente. Cohen insinuou que Trump, que já é objeto de 17 investigações diferentes, está sob o escrutínio do tribunal federal do Distrito Sul de Nova York por outros crimes que ainda não foram divulgados, relacionados com conversas gravadas entre ambos. Os republicanos tentaram desacreditar o depoimento do advogado. Um dos mais combativos foi o congressista de Ohio Jim Jordan, que detalhou os crimes financeiros pessoais Cohen e perguntou-lhe: “Foram cometidos para proteger o presidente?”. O advogado teve de responder que não.

Um cheque assinado por seu punho e letra

Para tentar reforçar a sua versão, o ex-funcionário do presidente apresentou alguns documentos, como um cheque de 35.000 dólares assinado por Trump em 1º de agosto de 2017 e que, de acordo com Cohen, serviu para reembolsar uma parte do dinheiro pago a Stormy Daniels por seu silêncio. Era um, diz ele, dos 11 cheques pagos ao longo de todo aquele ano, com o magnata já na Casa Branca. Outro dos cheques apresentados, de 17 de março, corresponde ao filho Donald Junior e à Fundação Trump, também no valor de 35.000. O presidente dos EUA já havia admitido no passado que o dinheiro recebido por aquelas mulheres veio do seu bolso, uma forma de evitar que a gestão fosse considerada uma doação externa de campanha, o que contradiz suas primeiras versões, mas até agora nega ter instruído seu advogado a fazê-lo.

Ao longo de seu depoimento, o advogado traçou um retrato narcisista e truculento do presidente norte-americano. Outro dos documentos que apresentou consiste em uma carta na qual o advogado ameaçava a Universidade Fordham se publicasse o histórico escolar de Trump. Ele também estava encarregado das informações negativas sobre sua suposta dispensa médica para não lutar no Vietnã, justamente na época em que zombou do senador John McCain como veterano de guerra. Quando o advogado lhe pediu os relatórios médicos, ele disse que não existiam. “Acabou a conversa dizendo: ‘Você acha que sou idiota? Eu não iria para o Vietnã”, de acordo com Cohen.

Também atribuiu comentários muito racistas ao presidente. Citou, por exemplo, que uma vez, passeando de carro por uma área marginalizada de Chicago, comentou que só os negros podiam viver daquela maneira. Também afirma que comentou que os afro-americanos nunca votariam nele porque eram demasiado estúpidos.

A declaração foi recriada na egolatria de Trump. Cohen mencionou que durante um leilão de arte contratou um homem para dar lances por um retrato do magnata para garantir que fosse vendido como a peça mais cara. O indivíduo pagou 60.000 dólares que a Organização Trump reembolsou e o quadro ficou como propriedade da empresa. Cohen também disse que “inflacionava seus ativos quando isso servia aos seus propósitos, como ao tentar entrar na lista das maiores fortunas da Forbes, ou os reduzia para pagar menos impostos”. Cohen entregou ao Congresso três declarações de ativos 2011, 2012 e 2014 que Trump havia preparado para o Deutsche Bank, porque queria um empréstimo para comprar o time de futebol americano Buffalo Bills, que acabou não adquirindo.

Também avalizou uma história muito difundida em Washington: que Trump nunca imaginou ganhar as primárias republicanas ou as eleições presidenciais e que sua campanha apenas buscava publicidade para seus negócios. Na verdade, afirma que quando o empresário já havia sido empossado como presidente continuou interessado em um projeto de arranha-céus que a empresa queria construir em Moscou, o que seria um grave caso de conflito de interesses. Cohen havia mentido sobre esse assunto no passado por, segundo ele, ordem de seu chefe. A congressista Debbie Wasserman-Schultz, ex-presidenta do Comitê Nacional Democrata, perguntou a Cohen: “É possível que toda a família Trump estivesse comprometida com um adversário estrangeiro [a Rússia] nos meses que antecederam a eleição presidencial?”. E Cohen respondeu: “Sim”.

O depoimento de Cohen aponta Trump como responsável por possíveis crimes fiscais e outros relacionados com o financiamento sua campanha, mas não fornece nenhuma prova do coração dos inquéritos sobre a trama russa: se o presidente ou seu entorno colaboraram de alguma forma com o Kremlin em uma ingerência que os serviços de inteligência norte-americanos consideram certa. O procurador especial encarregado do caso, Robert S. Mueller, está concluindo o relatório final depois de quase dois anos de investigação, razão pela qual a audiência de quarta-feira não pôde entrar em muitos detalhes.

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