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Coluna
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A sacralização do mecanismo político que paralisa o Brasil

Ou o Brasil quebra esse mecanismo perverso ou continuará no pântano da imobilidade e do desencanto em que se encontra a sociedade

Senadores discutem durante sessão para eleição do presidente da Casa.
Senadores discutem durante sessão para eleição do presidente da Casa.Fabio Rodrigues Pozzebom (Agência Brasil)
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Lula e o PT deixaram o poder, e, pelo que estamos vendo, o famoso mecanismo político descrito pelo cineasta José Padilha continua de pé, agora sob outra bandeira política de sinal contrário. Segundo ele, “a corrupção não se dá entre os políticos. É a política”.

Para poder conviver sem remorso com o mecanismo criado pelos políticos para se perpetuarem no poder, foi necessário para Lula e o PT sacralizá-lo em nome de uma causa mais nobre que assim justificasse. E não há nenhuma causa melhor que o serviço às classes mais baixas. Foi o que Lula tentou explicar ao ex-presidente uruguaio José Mujica quando lhe disse que no Brasil “não era possível governar de outro jeito” se quisesse avançar nas conquistas sociais. Segundo Lula, ou se aceitava o mecanismo, ou este acabaria nas mãos de uma direita que o usaria do mesmo jeito, mas se esquecendo da parte mais pobre do país.

Isso explica por que Lula, assim como José Dirceu, insiste ainda hoje em sua inocência no uso desse mecanismo de corrupção ao qual quem não adere fica de fora do festim político. A sacralização do mecanismo se deu metamorfoseando-o para que o dinheiro da corrupção fosse visto como um mal menor para ajudar os deserdados.

Sem dúvida será difícil que o Brasil possa desarmar essa estrutura, porque ela foi não só ideologizada como também até sacralizada. Então, mesmo se Bolsonaro e Moro tivessem o propósito real de desarticular esse mecanismo agora, seria muito difícil para eles, ou inclusive impossível, como já começamos a ver. A força do mecanismo e seu uso por parte praticamente de todas as forças políticas anulariam tal esforço.

O mais triste é que os mais pobres, não podendo compreender a sutileza e perversidade do mecanismo que se justifica pelo bem deles, acabam também por aceitá-lo. É o “rouba, mas faz”. É como se dissessem que não importa que esse mecanismo sirva para perpetuar os políticos no poder, e até enriquecerem pessoalmente. Já interiorizaram que são todos igualmente ladrões, mas que pelo menos os inventores do mecanismo lhes oferecem as migalhas do festim. E voltarão a absolver a direita quando notarem que também ela precisa se render ao mecanismo.

Ainda sob a premissa que sua sacralização possa oferecer alguma melhora para os pobres, ela acaba virando uma armadilha, já que esse mecanismo, que ao se ideologizar se torna intocável, impede que os despossuídos possam sonhar com um país mais livre, capaz de crescer e distribuir a riqueza sem ter que atravessar o túnel escuro dessa corrupção que polui todo o sistema democrático.

O mecanismo impede, por exemplo, que os melhores, os mais preparados e os menos poluídos sejam escolhidos para os cargos públicos como ministros, diretores de estatais ou de agências reguladoras. Nomeados pelo mecanismo, serão obrigados a prestarem adoração a seus sacerdotes, mesmo que à custa de saquear as riquezas da nação, como foi no escândalo da Petrobras.

Quem não se enquadra nas leis internas do mecanismo, não conseguiria sobreviver nele, embora, por descuido, pudesse chegar até ali. Lembro-me de que quando Fernando Haddad era ministro da Educação ouvi no Ministério que ele não era “um petista doc”. Traduzindo, queria dizer que ele não sabia se adaptar bem ao mecanismo.

Vivi de perto as peripécias de Cristovam Buarque quando foi escolhido ministro da Educação do primeiro Governo Lula. Sem dúvida, era quem mais sabia sobre o assunto ao qual havia dedicado boa parte de sua vida. Durou pouco. Lula o demitiu por telefone enquanto viajava na França. Mais tarde, como ele mesmo me contou, Lula explicou-lhe o motivo de sua demissão voando juntos: “É que o Dirceu não quer você como ministro”. Hoje, à luz do mecanismo, quis dizer que Buarque, embora reconhecido internacionalmente como especialista em educação, não se ajustava à doutrina do mecanismo, sinônimo das práticas pouco republicanas sem as quais seria impossível governar no Brasil. E hoje até os eleitores deixaram Buarque fora do poder.

E, no entanto, ou o Brasil quebra esse mecanismo perverso ou continuará no pântano da imobilidade e do desencanto em que se encontra a sociedade, cada dia mais insatisfeita com aqueles que a governam. Uma sociedade que deve compreender que não se trata de partidos melhores ou piores, de políticos e governantes mais ou menos corruptos, mas de desarmar esse mecanismo de raízes tão profundas que atravessa séculos de Governo nos quais, primeiro os escravos, e hoje os pobres, ainda se continua a querer comprar com espelhinhos coloridos como os antigos colonizadores europeus faziam com os indígenas. Acham que mudou tanto?

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