Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?
Essa pergunta é fundamental para saber nossa atuação no mundo. Psiu!, vamos ouvir algumas respostas em Brasília
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
Eis uma bela pergunta no reencontro do casal depois do expediente. Esse diálogo é muito revelador sobre a importância da nossa existência. Foi a partir de uma indagação romântica desse naipe que o físico soviético Andrei Sakharov (1921-1989) deu uma revirada na história das armas nucleares, ganhou o Nobel da Paz de 1975 e chacoalhou a cortina de ferro da ex-URSS.
Ao final da crônica, contarei mais um pouco sobre o camarada Sakharov — segura firme, ansioso leitor, nada de Google ainda, vamos dar uma passada agora, como seres curiosos e invisíveis, em alguns lares de Brasília e alhures. Qualquer semelhança com personagens da “nova política” terá sido mera coincidência:
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Apresentei à nação brasileira um pacote anticrime que zera ou reduz pena até a metade quando a legítima defesa decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Não, não é licença para matar”.
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Mi vida, hoje chutei o balde, esse país precisa de um choque pedagógico. Declarei em uma entrevista à revista Veja que o brasileiro viajando é um canibal. Rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola”.
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Depois do sucesso do kit gay, uma das mais importantes bandeiras na corrente de orações do whatsapp eleitoral, lancei a retomada de um clássico da família brasileira: a partir de hoje nesse país, mulher veste rosa e homem veste azul”.
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Finalmente comecei a ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão. A fé em Cristo significa lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e na história”.
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Uma formidável reforma da previdência que irá solucionar o rombo da economia do país. Sim, os idosos de baixa renda terão auxílio abaixo de um salário mínimo”.
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Caiu o foro privilegiado no STF, mas trocamos o promotor do caso. Curte a gente adoidado nas redes sociais.”
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Deixei patente que a Vale [no caso Brumadinho] não enxerga razões determinantes de sua responsabilidade. Não houve negligência, imprudência, imperícia..."
“Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Evacuei, amor, evacuei, como diz aqui o boletim do oficial”.
De volta ao Sakharov
Como eu ia dizendo, ao chegar em casa, naquela noite gelada dos anos 1970, o gênio Sakharov preparou a sua vodka e ouviu da sua mulher Yelena Georgievna Bonner (1923-2011), médica pediatra e ativista de direitos humanos, a solene pergunta: "Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?”
“Hum, hum. Minha bomba (de hidrogênio) vai funcionar perfeitamente. E como você está indo com aquela criança com catapora?”
O assombro com a própria voz ao responder sobre a bomba que poderia matar milhares provocou uma reação urgente no físico. Sakharov ficou mais espantado ainda pelo fato de estar dialogando com uma mulher que salvava vida de crianças.
Renegou sua “obra maldita” e defendeu o fim dos testes com armas nucleares. A sua campanha rendeu o Nobel da Paz de 1975. O regime soviético proibiu que fosse receber o prêmio e o condenou ao isolamento e censura total na cidade de Gorki (hoje Nishnij Novgorod). Somente com a abertura do regime, em meados dos anos 1980, com a Glasnot de Gorbatchov, o físico e Yelena recuperaram suas atividades normais.
Obrigado mais uma vez, mestre Kurt Vonnegut, pelo mote dessa crônica. Pesquei o tema no seu livro TimeQuake. Coisas da vida.
Xico Sá, jornalista e escritor, escreveu o livro Big Jato (editora Companhia das Letras), também livremente inspirado nas “viagens literárias” do seu ídolo Kurt Vonnegut.
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