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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

As meias verdades

Independentistas catalães têm liberdade na Espanha para expressar suas ideias e convicções. O que não podem fazer é transgredir a lei e cometer um golpe de Estado, como tentaram em outubro de 2017

Mario Vargas Llosa
Fernando Vicente
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Como ex-presidente do PEN Internacional (entre 1977 e 1980) e atual presidente emérito dessa organização de escritores que, fundada na Inglaterra no século passado, travou tantas batalhas a favor da liberdade de expressão e do direito de crítica no mundo, tenho que declarar minha tristeza e minha vergonha pelo texto A Troubling Trend: Free Expression Under Fire in Catalonia (“uma tendência preocupante: liberdade de expressão sob ataque na Catalunha”), que o PEN de Nova York acaba de publicar em seu boletim informativo. Infestado de meias verdades − mentiras dissimuladas −, o texto exagera e distorce o que ocorre na Espanha com o movimento independentista catalão e dá a impressão de que é um país no qual se restringe a liberdade de pensamento, pisoteiam-se direitos democráticos elementares, impede-se o voto dos cidadãos e onde juízes insones proíbem aos cantores e comediantes as zombarias e os excessos toleráveis em todas as sociedades abertas do resto do mundo.

Os autores do texto − Alyssa Edling e Thomas Melia − que o centro nova-iorquino publica recordam que o PEN norte-americano “não toma posição sobre o tema da independência catalã”, para depois endossar todas as patranhas que o centro catalão do PEN (que eu ajudei a ressuscitar durante minha presidência!) divulgou, como órgão militante do movimento de independência, sem submetê-las à mais mínima verificação, e, pior ainda, ocultando fatos básicos, de modo que uma entidade de prestígio e de impecáveis credenciais democráticas aparece difundindo pelo mundo o que são, simplesmente, invenções e calúnias da propaganda política.

Quando afirma que o referendo de 1º de outubro de 2017 foi “disrupted” (interrompido) pela polícia que confiscou as urnas e dispersou os votantes “em ações brutais”, exagera muito: de onde saem essas 893 pessoas feridas que menciona, se apenas duas pessoas com ferimentos passaram pelo hospital? O mais grave é aquilo que oculta: que o referendo em questão era completamente ilegal, proibido pela Constituição e pelas leis vigentes na Espanha, ou seja, um golpe de Estado. O Governo da Espanha tem o direito e a obrigação de impedir um ato de força como esse, da mesma forma que os Estados Unidos teriam se o Texas ou a Califórnia pretendesse se tornar independente e romper a União através de uma consulta local. Não foram as autoridades que “declararam” ilegal a consulta catalã. É a Constituição espanhola em vigor − aprovada com a imensa maioria dos votos dos catalães − que exclui que uma província ou região da Espanha possa se tornar independente por meio de uma consulta local. Todos os espanhóis devem se pronunciar, como é lógico, sobre o rompimento de uma unidade territorial formada há cinco séculos.

O texto sustenta que é uma “restrição inaceitável à expressão pacífica e livre” dos catalães o fato de que tenham sido impedidos de votar naquela ocasião. Como se, desde que a atual Constituição está em vigor (1978), não tivessem existido dezenas de ocasiões em que catalães em particular, e espanhóis em geral, votaram em eleições locais, nacionais e europeias! Mais uma vez, a astuta omissão – a de que aquele referendo era delituoso − permite apresentar a Espanha como uma sociedade na qual um Governo autoritário priva seus cidadãos da mais elementar garantia democrática.

Com mentiras dissimuladas, o PEN de Nova York exagera e deforma o que ocorre na Espanha e na Catalunha

Para o texto, os músicos e comediantes que foram processados (e, muitas vezes, absolvidos de qualquer culpa, como aquele que limpou o nariz com uma bandeira da Espanha) por iniciativa de organismos da sociedade civil ou por procuradores e juízes (aqui tão independentes como nos Estados Unidos) são indícios dessa “tendência preocupante” de privar os espanhóis da liberdade de se expressar e de exercer a crítica. Para alguém que vive na Espanha como eu, tal caricatura tem pouco a ver com a realidade deste país, que é um dos mais livres do mundo e permite em seu seio a crítica e os protestos até extremos delirantes. Aqui são lançados panfletos contra o Rei e a monarquia e insultados sem escrúpulo os líderes políticos, habitualmente submetidos a uma vigilância implacável por seus adversários e por uma imprensa independente capaz de invadir a intimidade a tal ponto que é possível afirmar que na Espanha o “privado” já não existe. No domínio político, as razões e críticas se confundem frequentemente com injúrias ferozes.

Os independentistas catalães têm na Espanha a mais absoluta liberdade para expressar suas ideias e convicções, assim como jornais, rádios e canais de televisão que as difundem e defendem. O que não podem fazer é, em nome delas, transgredir a lei e cometer um golpe de Estado, que foi o que tentaram em 1º de outubro de 2017. Por esse suposto delito serão julgados vários políticos catalães, que foram detidos preventivamente a fim de evitar o risco de que fugissem, como fizeram alguns de seus cúmplices, que escaparam para ficar sob proteção da Bélgica em uma região dominada pelos nacionalistas flamengos ultrarreacionários, que, é claro, sentem-se solidários com o movimento de secessão catalão.

A transformação da Espanha, graças à Transição, assombrou ao mundo por ter sido tão pacífica e profunda

Trabalhei muito quando fui presidente do PEN Internacional com o centro nova-iorquino, quando este era dirigido pela historiadora e ensaísta norte-americana Frances Fitzgerald. Era uma época de ditaduras abundantes em toda a América Latina e fizemos campanhas denunciando os crimes que eram cometidos pelos militares argentinos, uruguaios, chilenos, brasileiros, et cetera, assim como contra a censura e os atropelos da liberdade de expressão no resto do mundo. Como escritor e latino-americano, sei muito bem os abusos que os regimes autoritários de esquerda ou de direita cometem e fui vítima da censura em muitos lugares. Aqui, por exemplo, na Espanha, quando, na época de Franco, foi publicado meu primeiro livro de contos, tive que levar o manuscrito à censura, uma casinha anódina e sem nenhuma placa, onde se entregava o texto a um sujeito anônimo e se passava, dias depois, para recolhê-lo. O censor tinha marcado com um lápis vermelho as frases e palavras − às vezes capítulos − que deveriam ser suprimidos ou emendados.

Daquela Espanha, felizmente, resta muito pouco. A transformação vivida por este país, graças à Transição, assombrou o mundo por ter sido tão pacífica e profunda. Com o colapso da ditadura de Franco, e encorajadas pelo rei Juan Carlos, todas as forças políticas, de conservadores a comunistas, concordaram em acabar para sempre com a Guerra Civil e coexistir em liberdade, em um regime democrático e sob uma Constituição, a mais livre que a Península Ibérica já teve em toda sua história. Desde então, a Espanha desfruta de uma liberdade que nunca conheceu antes e que muito poucas sociedades no mundo têm.

O PEN de Nova York faria muito melhor se se preocupasse com os crimes contra escritores e jornalistas cometidos debaixo de seus narizes na Venezuela, em Cuba ou na Nicarágua – onde, além de jornais, rádios e estações de televisão serem fechados, são presos, torturados e assassinados opositores − em vez de servir de caixa de ressonância para as mentiras dos separatistas catalães.

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2019.

© Mario Vargas Llosa, 2019.

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