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Netflix
Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

Marie Kondo quer matar os bagunceiros de tédio

O triunfo de uma pessoa tão insípida na televisão se deve à quantidade de sua religião: gente organizada é moralmente superior

Marie Kondo na série de Netflix que protagoniza.

Marie Kondo é uma autora japonesa famosíssima por seu método para alcançar a felicidade mediante a ordem doméstica. Depois de vender milhões de livros, agora triunfa na Netflix com um reality intitulado Marie Kondo: A Magia da Arrumação, em que ajuda famílias que roçam a síndrome de Diógenes a manterem um lar arrumadinho, onde as pilhas de roupa suja não ameacem devorar as crianças. O sucesso do programa é inexplicável, porque é tão chato como parece. Se em vez de uma mulher japonesa que sorri o tempo todo e fala baixinho fosse apresentado aos berros por um por um desses apresentadores expansivos e agressivos (“Cacete, que quantidade de merda vocês colecionam, nesta casa não viveriam nem os porcos mais porcos da Porcolândia” etc.) a coisa ganharia muitíssimo.

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O triunfo de uma pessoa tão insípida e tão pouco televisiva como Marie Kondo se deve ao fato de que sua religião tem muitos fiéis. A ideia sobre a qual se equilibra é uma verdade aceita universalmente: gente organizada é moralmente superior. A recriminação não tem a ver com higiene nem com estética, e sim com a virtude e o vício. Um bagunceiro é uma pessoa abjeta.

Como bagunceiro crônico que sou, passei a vida toda suportando esta recriminação surda (ou, às vezes, explícita e gritalhona), e sempre senti que há algo de nazista nessa superioridade moral, como acredito que haja algo de nazista na doutrina de Marie Kondo. Os desejos de limpeza e esmero sempre escondem um nojo em relação ao mundo, à massa, ao incontrolável. Nos mais inocentes dos casos, são ilusões de controle de uma vida que, no fundo, sabe-se intratável, mas que se suporta enquanto os lápis estiverem no seu porta-lápis, e os livros, nas prateleiras. Os bagunceiros somos um memento mori, um aviso perene de que as minúcias não vão liberar ninguém de catástrofe alguma, e de que o caos não pode ser contido além das paredes de uma casa. Por isso somos odiosos. Por isso tem que vir a Marie Kondo nos matar de tédio.

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