A frágil operação contra brigadistas do Pará é fonte de Bolsonaro para atacar ONGs e até DiCaprio sem prova

Delegados dizem em pedido de prisão de ativistas que conversas gravadas entre suspeitos "patenteia os rumores que ouvimos”

Brigadistas de Alter do Chão (PA) que haviam sido presos na terça (26) são soltos na quinta (28)

A teoria conspiratória foi exposta primeiro pelo presidente Jair Bolsonaro, sem nenhuma evidência para comprová-la. Era 21 de agosto quando ele afirmou em frente ao Palácio da Alvorada que “pode estar havendo, sim, pode, não estou afirmando, ação criminosa desses ongueiros para chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o Governo do Brasil. Essa é a guerra que nós enfrentamos”. Referia-se aos incêndios na Amazônia, que se intensificaram naquele mês, em movimentos captados por monitoramentos oficiais.

Pouco mais de três meses depois, quatro ongueiros do Instituto Aquífero Alter do Chão foram presos na terça-feira sob acusação de se envolver em incêndios nessa região do Pará, numa operação da Polícia Civil local baseada apenas em frágeis elementos, conforme documentos analisados pelo EL PAÍS. O caso não só deu vida à teoria exposta por Bolsonaro como fez o presidente voltar com força total à campanha contra as ONGs com o estímulo a boatos falsos ou sem comprovação.

Em menos de 24 horas, o mandatário fez questão de falar publicamente duas vezes sobre o tema. Na quinta, foi durante sua semanal transmissão ao vivo via Facebook. Na manhã desta sexta, ele voltou a repetir aos repórteres uma acusação que envolve até o ator Leonardo DiCaprio. “O Leonardo DiCaprio é um cara legal, não é? Dando dinheiro para tacar fogo na Amazônia”, afirmou o presidente, sem qualquer evidência. Com a declaração, alimentou sua azeitada máquina das redes sociais contra o ator e ativista ambiental e as ONGs em geral. Também provocou uma enxurrada de memes ridicularizando a menção. Com os dois lados, conseguiu de novo pautar a imprensa nacional e internacional, entre o ultraje e a perplexidade.

A questão, porém, vai além das estratégias de comunicação de Bolsonaro. A prisão de João Victor Pereira Romano, Daniel Gutierrez Govino, Marcelo Aron Cwerner e Gustavo de Almeida Fernandes — todos ligados à Brigada Alter do Chão, principal projeto do instituto no local, de combate às queimadas ― motivou críticas de entidades ambientais e direitos humanos e da oposição, que suspeitam se tratar de uma ação politicamente motivada, entre outras razões porque os delegados responsáveis pelo caso apresentaram como provas de crimes apenas conjecturas a respeito das conversas entre os acusados, obtidas em escutas telefônicas autorizadas judicialmente. Uma das conjecturas trata justamente de Leonardo DiCaprio.

A menção ao ator feita por Bolsonaro, nasce, ao que parece, do próprio pedido de prisão da Polícia Civil contra os ativistas, que se baseia em uma conversa dos brigadistas em que o ator é citado como doador da ONG WWF (World Wide Fund for Nature). Os brigadistas falam nas conversas que iriam conseguir uma doação de 70.000 da WWF e a polícia cogita, sem nenhuma evidência, que os brigadistas promoviam queimadas para conseguir esse tipo de contribuição. "Em outra conversa, Marcelo e Gustavo falam acerca do contrato com a WWF, cessão de imagens e a doações de equipamentos. Gustavo fala que são dois contratos e que o financiador (que seria o ator Leonardo DiCaprio, conforme extraímos em outro diálogo) já teria doado meio milhão para a WWF, valor este que precisa ser 'botado para uso”, diz trecho do documento.

Em meio à repercussão do tema, o juiz do caso acabou libertando, na quinta-feira, os quatro acusados, mas o conflito está longe do fim. “Os acusados seguem sendo processados e terão que cumprir medidas cautelares. Além disso, os equipamentos apreendidos na operação da última terça-feira ainda estão sob custódia da polícia, sem que haja qualquer justificativa para tal decisão por parte das autoridades”, afirmou a Anistia Internacional. Depois das críticas, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), ordenou a substituição do delegado do caso, sem dar mais detalhes, e a Polícia Civil parou de dar entrevistas ou esclarecimentos sobre o assunto. “O Governo do Estado do Pará informa que só irá se pronunciar após a conclusão do inquérito policial”, diz a instituição em nota.


No pedido de prisão, delegados dizem ter ouvido rumores sobre envolvimento direto dos líderes da brigada nos incêndios de Alter do ChãoReprodução

Lacunas

O EL PAÍS revisou o pedido de prisão feito pela Polícia Civil, a ordem de prisão decretada pelo juiz e entrevistou especialistas em perícia e crimes ambientais para analisar o caso. Embora o delegado José Humberto Melo Júnior tenha afirmado que entre as provas contra os “ongueiros” havia imagens, depoimentos e interceptações telefônicas, o pedido de prisão assinado pelos delegados Fábio Amaral Barbosa e Silvio Birro Duarty Neto não faz nenhuma menção a depoimentos ou imagens.

Para pedir a prisão dos quatro brigadistas, os delegados citaram apenas conversas telefônicas gravadas entre 26 de setembro e 20 de novembro. O inquérito do caso investigava incêndios na Área de Proteção Ambiental (APA) de Alter do Chão entre os dias 14 e 16 de setembro. No pedido de prisão dos brigadistas, os delegados citam genericamente que houve “depoimentos colhidos” ao longo do inquérito, mas não dizem se esses depoimentos vincularam os quatro homens aos incêndios em Alter do Chão. Em outro trecho do pedido de prisão, os delegados dizem que uma conversa "patenteia rumores que ouvimos desde o início das investigações, que consiste no envolvimento direto dos líderes da brigada na queimada que assolou a APA de Alter do Chão, com o fito de ganharem notoriedade para angariar recursos”.

Embora sustentem que os quatro “ongueiros” faziam incêndios na floresta para “ganharem notoriedade para angariar recursos”, em nenhum momento os delegados citaram se houve perícia nos locais do incêndio e se havia alguma prova de que eles estiveram nos locais dos incêndios entre 14 e 16 de setembro. Em um trecho do pedido de prisão, os delegados dizem que os brigadistas eram os primeiros a chegar a locais de incêndio e por isso havia suspeitas.

Para especialistas entrevistados, caso não exista um laudo oficial de perícia dos locais dos incêndios, processos podem ser anulados na Justiça. Procurada, a Polícia Civil não comentou se existem laudos periciais dos eventos. “Toda infração que deixar vestígios tem que ter exame de corpo de delito. Às vezes uma falha nessa prova anula tudo. É muito comum”, explicou o advogado Gilberto Passos de Freitas, ex-corregedor do Tribunal de Justiça de São Paulo e especialista em crimes ambientais.

Durante a investigação de incêndios florestais, faz parte do procedimento padrão que os peritos tentem coletar vestígios para identificar como foi iniciado o fogo. Nada sobre isso está mencionado no pedido de prisão. “Pode ter elementos no local que forma usados para acelerar o incêndio. O objetivo da perícia é tentar entender o que aconteceu, quem teve acesso ao local, e isso pode também calcular o dano ambiental que ocorreu, porque isso influencia no cálculo da pena”, explica o perito criminal federal Marcos Camargo, presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF).

Para peritos com experiência nesse tipo de investigação, parece inconsistente a hipótese da Polícia Civil de que os brigadistas seriam suspeitos apenas porque chegaram primeiro aos locais do incêndio. “Esse fato geralmente tem pouca influência para determinar quem começou o incêndio. Sem nenhuma outra prova, isso não significa nada”, explica o perito americano Richard Meyer, que atua como investigador de incêndios e explosões nos Estados Unidos. Ele destaca a importância da perícia para investigar os responsáveis por esse tipo de crime. “Se gasolina foi usada para iniciar o fogo, por exemplo, amostras do solo podem ser coletadas para testes laboratoriais”, afirmou.

Nenhuma prova pericial é citada no pedido de prisão. No geral, os delegados se apegam às conversas telefônicas dos brigadistas e dão especial importância às conversas sobre doações que eles buscariam para a ONG. Para os delegados, essas conversas mostram que eles estavam “agindo dolosamente no intuito de auferir vantagens financeiras por meio de doações e contrato firmado com a gigantesca ONG WWF (World Wide Fund for Nature)”.

Para concluir que os brigadistas promoviam incêndios, os delegados citam pelo menos três conversas. Em uma delas, Gustavo, diretor da ONG Projeto Saúde e Alegria, diz a uma interlocutora que “venha preparada para Alter do Chão, pois em suas próprias palavras, ‘haverá bastante fogo, inclusive nas rotas por onde passarem’, deixando perceptível referir-se a queimadas orquestradas, uma vez que não é admissível prever, mesmo nessa época do ano, data e local onde ocorrerão incêndios”, argumentam os delegados, sem esclarecer se houve, de fato, algum incêndio no período posterior à conversa ou se Gustavo foi visto promovendo algum incêndio.

Os delegados também pinçam uma conversa em que um dos brigadistas agenda uma viagem para outros Estados para documentar incêndios. “Quando ainda pairava a incerteza acerca de quem acompanharia Rodrigo Viellas na viagem, se João ou Daniel, este falou novamente com Rodrigo que, ao ser indagado sobre o que consistia a viagem, respondeu que iriam entrevistar pessoas e ‘iriam para o fogo’, inicialmente no sul do Amazonas e depois Acre, não ficando claro como poderiam saber os locais, datas e horários de incidência de fogo naqueles Estados”, dizem os delegados, sem esclarecer se os incêndios aconteceram e se os brigadistas conseguiram de fato filmar ou promover algum incêndio.

Os delegados se apegaram também a uma conversa, em que João foi cumprimentado por um interlocutor “como o fotógrafo que mais queima e apaga fogo do Amazonas”, embora a investigação não tenha apresentado prova de que ele ateou fogo em algum lugar.

Até a mulher de um dos brigadistas foi motivo do olhar investigativo dos delegados, que chamaram atenção para uma ligação em que ela fazia a contratação de um interlocutor para fornecimento de alimentos para um evento, e falava na contratação de um ajudante de cozinha e de uma faxineira. Os delegados reclamam do fato de ela tentar contratar uma faxineira e um ajudante de cozinha. “Importante salientar que, se os alimentos já serão entregues pelo interlocutor contratado, não existe justificativa para a contratação de uma ajudante de cozinha, bem como de faxineira”, argumentam os policiais, que não esclareceram se houve a tal contratação e se o evento aconteceu.

Além de levantar suspeitas para a administração dos recursos da ONG e teorizarem que os suspeitos promoviam incêndios para conseguir notoriedade e dinheiro, os delegados também concluem que um dos suspeitos fornecia drogas a outras pessoas. “Durante todo o período de interceptação foram captados importantes áudios em que o alvo Gustavo de Almeida Fernandes assinalava com clareza que detinha droga em seu poder, não especificamente para consumir, sozinho ou com seus camaradas, mas também com o propósito de distribuir, ainda que gratuitamente”, afirmaram os delegados.

O advogado Michell Durans, que defende Daniel e Marcelo, diz que a investigação possui uma “grande falha”, porque faz interpretação de trechos de conversas dissociadas do contexto geral. “Do teor dessas conversas longas, ele pega trechos isolados e dá interpretação que melhor se adequa à intenção acusatória dele”, afirmou. “Acredito que houve um equívoco da autoridade policial. Não sei se equivoco arquitetado ou não. Houve uma precipitação em interpretar degravações telefônicas à mercê do seu interesse”, acrescentou.

Investigações em curso

A prisão dos brigadistas também despertou interesse do Ministério Público Federal, que pediu acesso aos autos do inquérito para avaliar se a competência do caso é federal, e não estadual. Os procuradores argumentaram no pedido de acesso que já existe uma investigação federal sobre os mesmos incêndios e que “nenhum elemento apontava para a participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil”. As investigações dos procuradores apontam para outra direção. “Ao contrário, a linha das investigações federais, que vem sendo seguida desde 2015, aponta para o assédio de grileiros, ocupação desordenada e para a especulação imobiliária como causas da degradação ambiental em Alter”, informaram em nota. O Ministério Público do estado do Pará ainda vai se manifestar sobre o pedido de acesso.

Ao EL PAÍS, a diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil, Maria Laura Canineu, apontou que um estudo da entidade já documentou como organizações criminosas atuam no desmatamento ilegal da Amazônia, o que converge com conclusões de investigações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. “Em nosso relatório documentamos como redes criminosas usam a violência e a intimidação para promover o desmatamento ilegal, inclusive utilizando-se das queimadas como parte do processo do desmatamento, após removerem as árvores mais valiosas”, afirmou. Ela também critica a falta de ações do governo federal “para coibir a violência contra defensores da floresta, sejam eles indígenas, pequenos produtores rurais ou mesmo agentes públicos, nem contra a impunidade que cria um ambiente permissivo à criminalidade na Amazônia”.







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