Os ‘xapiri’, espíritos da floresta amazônica, invadem a Paulista
Pajés yanomami realizam um ritual simbólico no centro da maior metrópole do país
"Yaaaaaah", brada Pedrinho Yanomami, agachado em uma sala no oitavo andar do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, segundos depois de o pajé Levi Yanomami lhe soprar nas narinas um pó alucinógeno através de uma espécie de bastão de madeira. É o início —e também uma versão reduzida— de um ritual que os isolados índios yanomami repetem há séculos no meio da Amazônia. Lá na floresta, eles passam dias inalando a yãkoana para conhecer os espíritos xapiris e aprender a responder seus cânticos. É o ritual de iniciação para ser pajé. No centro cultural localizado em plena avenida Paulista, eles fazem algo muito parecido, mas que só vai durar duas horas. "Vamos abrir caminho para a casa do saber e do conhecimento, é uma casa grande e alta", adianta o xamã Davi Kopenawa, que conduz a cerimônia, uma atividade da exposição fotográfica Cláudia Andujar, a luta Yanomami, em cartaz até o dia 7 de abril.
Pajé Levi e Pedrinho seguem agachados. Entre eles, um tubo de plástico e um papelete com o pó yãkoana, extraído de uma árvore de mesmo nome da selva Amazônica para levar conhecimento aos índios. Outros povos fazem um ritual semelhante, mas usam tabaco ou rapé. Os dois indígenas inalam várias vezes a yãkoana, ora diretamente, ora pelo bastão de madeira. De vez em quando, trocam algumas palavras em yanomami. Pedrinho tosse, dá três tapinhas na própria nuca e grita um longo "aaaaaaaaaah". Não é possível saber o que ele está sentindo neste momento, mas parece incomodado. Recordo que o próprio Davi já havia comentado como o ritual pode ser doloroso para os índios. Pajé Levi observa o incômodo de Pedrinho e sorri. Pouco depois —e sem nenhuma cerimônia— volta a soprar a yãkoana no nariz dele.
Vinte minutos passaram, e os dois ainda estão agachados. Usam calções e têm o rosto pintado de preto e vermelho. Nos braços, pinturas indígenas e acessórios com penas. O silêncio impera na sala, até que o pajé Levi de repente se levanta e começa a cantar. Pedrinho segue agachado, com os olhos fechados. Alguns minutos depois, também levanta e move o corpo lentamente, como se ensaiasse uma coreografia. Começa um verdadeiro espetáculo de cantos e danças indígenas cuja grandeza é impossível de ser reproduzida neste texto.
Estão os dois em transe. A cada momento, mudam o tom dos cânticos, agora em dupla, e as danças. O pajé Levi bate os pés no chão e emite um som semelhante ao de tambores, que vai ficando cada vez mais forte e ritmado. Fazem uma música intensa, usando apenas o corpo e a voz como instrumentos. Mas agora a cerimônia já não parece apenas uma apresentação artística, há algo simbólico que começa a emocionar profundamente o público. O pajé Levi toca o ombro de um índio guarani que assiste à cerimônia, e ele chora. Penso que ali podem estar compartilhando alguma força ancestral, mas logo vejo que outras pessoas também estão chorando. Eu mesma já não consigo conter as lágrimas. Não há nada racional neste momento, mas existe algo que parece nos tocar diretamente no subconsciente.
Pajé Levi interrompe os cânticos e diz algumas frases em yanomami que a maioria do público não entende. Pedrinho passa as mãos ao redor de algumas pessoas como se delas tirasse algo que agarra com as duas mãos fechadas. Faz um gesto em direção o solo e só volta a abrir as mãos quando elas chegam ao piso. É algum tipo de limpeza espiritual? Estaria devolvendo algo à terra? Não sei. É minha primeira experiência em um ritual xamânico. Ignorante, não sei interpretá-lo, mas consigo senti-lo. Vez por outra, Davi pega o microfone para traduzir as palavras do pajé e dá algumas pistas. "Ele está dizendo que reconhece esse grupo como amigo", explica.
Os dois indígenas seguem com diferentes cânticos e danças, sempre interagindo com alguém da plateia. Representante dos saberes do território Yanomami, o pajé Levi vem até mim. Segura meus ombros entre as suas mãos, e eu entendo que devo fazer o mesmo. Com minhas mãos em seus ombros, ele me olha profundamente nos olhos e diz frases em yanomami que nunca saberei o que significam. Outra vez não entendo, mas me emociono. Neste momento, percebo que há pelo menos uma dezena de pessoas chorando. "É muito emocionante", comenta uma menina que está do lado.
Passaram duas horas, e Davi avisa que os espíritos recuaram. É hora de encerrar a cerimônia que, segundo o xamã, nos levou para conhecer um pouco do mundo yanomami e do saber espiritual da montanha. Agora que entramos em uma pequena parte desse universo tão complexo, somos convidados a buscar na natureza algumas qualidades sob a orientação de Davi. "Huh, huh, huh", repetimos em coro, evocando a força da onça, um dos animais mais perigosos da floresta amazônica. "Os xapiri são os espíritos da floresta. Somos uma comunidade global que está na terra mãe. Não precisamos de dinheiro porque ninguém precisava no começo do mundo. Da terra, vem a riqueza da alimentação. É o fundamental para nós todos, indígenas e não indígenas. Quando o último yanomami morrer, vai cair uma pedra sobre a nossa terra", diz Davi, com um discurso simbólico, mas também político. Pede aos da cidade apoio na luta dos seus, justo quando o presidente eleito Jair Bolsonaro começa a questionar a demarcação das terras de seu povo.
São uma e meia da tarde. A cerimônia, que começou com cerca de 40 minutos de atraso porque os indígenas precisaram retornar ao hotel para pegar alguns instrumentos esquecidos, chega ao fim. "Esta aldeia São Paulo é meio difícil pra nós", diz Davi, pedindo desculpas e arrancando risos do público. Os três indígenas passaram alguns dias para prestigiar a exposição da fotógrafa Claudia Andujar, uma mostra de documentos que se tornaram cruciais para a luta e sobrevivência desse povo. Aquele domingo foi o último dia deles na metrópole. Agora, já estão de volta à sua terra, no meio selva amazônica, entre os estados de Amazonas e Roraima, a horas de viagem em um pequeno avião da capital mais próxima. Lá, seguirão como os guerreiros de sempre, lutando pela terra mãe.
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