“A classe média não se vê representada pela oferta política. É vilipendiada, como se viu com os ‘coletes amarelos”
Teórico da França periférica, Christophe Guilluy define quadro que explica muitas tensões do Ocidente hoje
O geógrafo Christophe Guilluy (Montreuil, 1964) desenvolveu conceitos nos livros Fraturas Francesas, França Periférica e Crepúsculo dos de Cima que explicam muitas das tensões da França atual e das democracias ocidentais. A recente publicação de seu mais recente ensaio, No Society. O Fim da Classe Média Ocidental, coincide com os protestos do movimento dos coletes amarelos na França. Essa roupa fosforescente, obrigatória nos automóveis, é o emblema do protesto contra o aumento do preço dos combustíveis e do cansaço no interior do país, a França periférica que teorizou.
Conversamos com Guilluy em um café perto da Place de la République, em Paris, um território bobo: contração de burguês e boêmio, essa nova classe dominante que vive nos bairros gentrificados das grandes cidades, é cosmopolita e politicamente progressista ou liberal. Foi dias antes da quarta jornada de protestos protagonizados pelos coletes amarelos neste sábado, que levou ao menos 125.000 manifestantes (10.000 deles em Paris) às ruas, com a detenção de 1.723 pessoas - uma mobilização que se por um lado manteve a pressão sobre o Governo Macron, por outro, não cresceu.
Pergunta. Se seu livro mais recente fosse um filme de Hollywood, os bobos seriam os vilões.
Resposta. Não, eles não são mais do que atores econômicos que aproveitam as lógicas do mercado liberal. Não acredito na ideia de que há pessoas que decidiram expulsar as classes populares das cidades. É o laissez-faire do mercado: o neoliberalismo que triunfou.
“O laissez-faire do mercado expulsou as classes populares das cidades”
P. E os bobos, a classe dirigente, declararam a secessão, de acordo com o senhor.
R. Vemos uma concentração cada vez maior nos mesmos lugares não só das elites, dos ricos, mas das categorias superiores que os rodeiam e que estão no que eu chamo de novas cidadelas em que as grandes metrópoles se tornaram.
P. Não são mais apenas o 1%, como se dizia há alguns anos em referência ao 1% dos mais ricos?
R. Um sistema não se sustenta com 1%, a menos que seja uma ditadura. A coisa é mais sutil. O modelo se sustenta porque beneficia muitas categorias. O mundo de cima é vasto, não são só os ricos. Tudo depende de onde você mora. Você pode morar em Paris e ter um salário modesto, mas culturalmente estar integrado no modelo dominante. O processo de secessão é feito quase inconscientemente. Acontece um efeito de bolha: quando você anda por Paris, Madri ou Nova York, vê as mesmas pessoas, tem as mesmas conversas. Hoje existe mais diferença cultural entre um parisiense e um habitante da região de Creuse [no centro da França] do que entre um parisiense e um nova-iorquino ou um barcelonês.
P. Por que é ruim o parisiense se sentir mais próximo do nova-iorquino do que do habitante de Creuse?
R. Em si não é ruim. O problema é saber se tem consequências em termos de representação democrática. Uma democracia são classes populares e superiores que interagem. Uma sociedade saudável integra economicamente os mais modestos, os representa politicamente e culturalmente os respeita. Foi o que aconteceu nos Trinta Gloriosos [o período de prosperidade entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos setenta], um círculo virtuoso em que tanto o operário quanto o executivo estavam integrados economicamente, estavam representados por partidos políticos e havia um respeito cultural entre essas categorias. O Partido Comunista consistia em uma base operária, mas acima havia os intelectuais.
“Hoje há mais diferenças entre um parisiense e um francês do centro do país do que com um nova-iorquino”
P. Os bobos de então.
R. Sim, exceto que antes falavam em nome do povo, o serviam, o respeitavam. Hoje vivemos esse processo de secessão e ruptura com uma representação política que não responde às expectativas das classes populares. Os grandes partidos não se adaptaram à situação social e cultural das classes populares, a classe média baixa fragilizada pela globalização. Na França, entre a base eleitoral da esquerda ou da direita, só resta o que chamo de herdeiros da classe média. À direita, os aposentados e, à esquerda, os funcionários públicos, categorias relativamente protegidas da globalização. Macron ganhou não apenas com os vencedores e com as metrópoles, mas com uma maioria desses protegidos. E se ele cai nas pesquisas é porque prejudica esses eleitorados. O grande problema é o desaparecimento da classe média no sentido amplo: o operário, o empregado e o executivo intermediário. Hoje essas categorias são mais frágeis, vivem em territórios onde pouco emprego é criado e não se veem representadas pela oferta política. E são vilipendiadas, como se viu com os coletes amarelos.
P. Talvez sejam desprezadas, mas também fascinam.
R. É como se a tribo perdida da Amazônia tivesse sido descoberta. O paradoxo é que a classe média ocidental desapareceu, mas nos países ocidentais a maioria das pessoas é de operários, empregados, pequenos assalariados. Durante muito tempo acreditamos, ao viver nas grandes metrópoles, que a França parecia com as grandes cidades e que os outros territórios envelheciam e desapareceriam. A surpresa de Brexit ou da eleição de Trump foi a descoberta da tribo perdida. Percebemos que essas pessoas estão aí e potencialmente são maioria. Não decidiram ser contra a globalização, pelo contrário: seguiram o jogo. E 20 ou 30 anos depois constatam que o modelo não os beneficiou. Hoje deixaram de ouvir o mundo de cima e usarão todos os pretextos para expressar o descontentamento. Existe um descompasso entre uma oferta política que não dá respostas e aquilo que muitas pessoas esperam. Os partidos populistas estão se infiltrando por essa brecha. Fazem marketing: se adaptam à demanda.
P. Macron obteve 10 milhões de votos a mais que Marine Le Pen. Hillary Clinton, quase 3 milhões mais do que Trump. A força do populismo não estaria sendo superdimensionada?
R. Se amanhã as classes populares elegessem alguém, certamente não viria da extrema direita. Talvez fosse um líder de esquerda ou de centro. Mesmo alguém como Macron, em sua campanha fez populismo com a ideia de ruptura. Entre as demandas das classes populares está a questão do trabalho, da regulação econômica e dos fluxos migratórios. Quem poderia estar em melhor posição para abordar essas questões? Eu não acredito que seja a extrema direita. Como se diz em geopolítica, são os falcões que fazem a paz. A regulação dos fluxos migratórios é uma questão polêmica ideologicamente, mas com consenso: na França, cerca de 70% da população, qualquer que seja sua origem, é a favor de regulá-lo.
P. A imigração está regulada.
R. Mas o que as pessoas querem é uma redução na imigração. E devem ser os pombos que o façam, é mais tranquilizador. Se conseguirmos que os grandes partidos de direita e de esquerda, e especialmente a esquerda, se apropriem da questão, encontraremos uma saída honrosa. É melhor que o faça um Macron do que uma Le Pen.
P. A secessão do que o senhor chama de cidadelas não é inevitável.
R. Da mesma forma que uma sociedade não pode durar se a maioria das classes populares for deixada de lado, ela não pode funcionar apenas com estas porque acaba na ditadura do proletariado. O mundo de cima tem muito a perder se não se mexer. Sou a favor de uma aterrissagem suave. Se Macron não o fizer, será alguém com a capacidade de libertar-se do seu próprio campo. A vitória de Trump e de Macron é a daqueles que pensaram contra o seu próprio campo. É preciso pensar contra si mesmo. Não há outra solução. Caso contrário, rumamos para o choque.
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