Vivo um relacionamento abusivo com o trânsito de São Paulo
E, se uma ponte desaba do outro lado da cidade e você teme por sua integridade pessoal, sinto informar, mas você vive também
Uma ponte ameaça desabar a 20 km de minha casa, em um lugar que não frequento e não faz parte de minha rotina diária, e imediatamente eu temo por minha integridade pessoal. Parece conversa de maluco, mas quem é usuário do transporte público em São Paulo sabe que a cidade tem formas perversas de demonstrar que a lei de Murphy é real.
Enquanto todos acompanhavam às notícias sobre macacos hidráulicos, escoramento e sumiço do projeto original do viaduto que cedeu na pista expressa da marginal do Pinheiros, em frente ao Parque Villa-Lobos, eu me preparava para fazer o trajeto de pouco mais de 15 km entre a Vila Marari (zona Sul) e Pinheiros (zona Oeste) como se estivesse indo para uma hora e meia de guerra.
— Como está o trânsito? — pergunto às 6h40 da manhã ao fiscal da MobiBrasil, um daqueles moços de colete amarelo que ficam nos pontos anotando o horário dos ônibus para ajudar no fluxo, mas que são percebidos como os ‘empurradores de gente’, por sua inglória função de forçar o fechamento das portas. Informo o destino e recebo orientações detalhadas.
— Por enquanto está normal, mas pegue o trem [na estação Morumbi]. Há chances de a Berrini parar e os ônibus retornarem da Bandeirantes.
Todos no ponto prestam atenção às orientações, completamente resignados. Não há tempo para indignação. O morador da metrópole mais rica da América Latina se acostumou a ter que contornar os problemas causados pelas sucessivas gestões de síndicos-prefeitos, políticos que pensam a cidade como um prédio antigo de moradores inadimplentes. Onde se conserta um vazamento aqui e se escora uma coluna acolá, enquanto se ignora a dedetização obrigatória para, no Natal, colocar pisca-piscas do portão. Em São Paulo, é a impressão sobre o que se vê, e não o que se faz realmente, que garante que o síndico fique no poder por mais tempo.
Isso não significa que a indignação não exista. O morador de São Paulo tem uma violência reprimida, mas é uma violência de proximidade. “Dá só mais um passinho pra frente. Todo mundo quer ir trabalhar”, grita a cobradora que testa a leis da física ao apertar mais um dentro do ônibus. Quem não consegue entrar sabe que a culpa é sempre de alguém. Pode ser do famoso usuário iniciante, frequentemente alguém com mochila grande ocupando o espaço de três passageiros; do motorista, que insiste em continuar fazendo seu trabalho de parar nos pontos mesmo quando não cabe mais ninguém; da mulher com criança, que, talvez por instinto de proteção, prefira não passar a catraca, e acaba tumultuando a porta. São tantos os culpados pelo desconforto ao redor, que ninguém se lembra do poder público ou da empresa que projeta os ônibus cada vez mais compridos e esbeltos, para caber nas faixas e corredores sem recuo.
Garantir a integridade física e psicológica no momento da viagem é mais importante que problematizar a realidade. Pois, acredite, o transporte público de São Paulo machuca. Literalmente. Quem nunca voltou para casa com manchas roxas nos braços e pernas após uma viagem de ônibus... É um privilegiado. Acontece com tanta frequência que sequer é um evento digno de nota. Há pouco mais de um mês, um motorista invadiu um corredor e bateu no ônibus na avenida Vereador João de Luca, na zona Sul. A freada foi tão forte que fomos arremessados para frente. Alguns desceram mancando. E, enquanto o motorista do carro reclamava ao celular, caminhamos pela via em busca do próximo ônibus lotado. Não ouve xingamentos. O senso de sobrevivência diz que você precisa seguir em frente, correr, retomar a rotina. Reclamar mesmo só quando você estiver confortavelmente apertado no próximo transporte público.
Admito, seria bom ter ouvido um pedido de desculpas. Mas motorista de carro de São Paulo nunca pede desculpas. Ele vive em uma realidade paralela na qual é, ao mesmo tempo, vítima e algoz do trânsito da cidade.
Quem vive esse tipo de relacionamento abusivo também brinca com a situação. Tentar achar graça e justificar que não é tão ruim assim é forma de sobreviver. Eu costumo contar que fiz duas faculdades graças ao transporte público de São Paulo, contrariando as previsões de alguns professores que acham que leitura de ônibus não é qualificada. Claro, não vou negar que deve ser uma delícia estudar confortavelmente em uma biblioteca, mas, quando essa não é a opção, você se agarra no que tem. E não há melhor interprete de Sérgio Buarque de Holanda que o trânsito de São Paulo e seus motoristas "cordiais". Vejo até a poética, e um pouco de justiça social, em ver os carros parados enquanto o trem desliza pela marginal.
Mas, só por hoje, a guerra tão esperada não veio. O trânsito de São Paulo não é um abusador previsível. Após o feriado prolongado de seis dias, a cidade mostrou que ainda tem capacidade de resistir e, contra todas as expectativas pessimistas, encontrar meios de fluir. E enquanto a solução para o viaduto que caiu por puro descaso público não vem, fico aqui sonhando. E se todas as bicicletinhas da Yellow ficassem posicionadas na marginal para servir de rota alternativa para quem não quer ficar preso dentro do ônibus ou no carro? (E nem venham falar da ciclovia que faz o mesmo percurso, mas é de acesso limitado a poucos). Eu sei que vivo em um relacionamento abusivo com trânsito de São Paulo, mas ainda acredito que um dia vou me libertar.
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