Freios institucionais ao avanço de Jair Bolsonaro
Setores do judiciário e do ministério público não aceitarão passivamente decisões e políticas públicas que atentem contra a Constituição, que firam liberdades civis e de minorias
Pela primeira vez, um candidato de extrema-direita foi democraticamente eleito como presidente do Brasil. Aos derrotados, cabe respeitar o resultado, reconhecer os erros sem se esconder atrás de explicações escapistas, e começar a construir a oposição e alternativas para o futuro. Não se pode creditar o resultado apenas a fake news manipuladoras e à estratégia de guerrilha digital do lado vencedor. A maioria do eleitorado votou ciente do que fazia. O discurso belicoso e a pauta de regressão democrática do eleito apenas mobilizaram um caldo conservador que já vinha em maré montante, tanto pelo avanço da direita religiosa e sua teologia da prosperidade, quanto pela expansão quantitativa de uma classe média escolarizada e tecnocrática, que vê na atividade privada a panaceia eficiente contra o demônio corrupto do Estado. A unir esses grupos, o individualismo meritocrático como modelo convicto de ascensão social; a completá-los, uma rejeição aguda à própria ideia de política, o que engloba o antipetismo —sentimento em grande medida gestado pelo próprio partido em seus inúmeros erros e desvios dos últimos anos. Nessa terra fértil, conteúdos abjetos circulados digitalmente nas últimas semanas apenas ativaram o viés de confirmação de milhões de eleitores dispostos a acreditar. Some-se a isso um candidato sem programa claro e sem exposição ao contraditório, sobre quem cada eleitor projetou o que quis, e tem-se o voto da maioria do eleitorado.
A partir de determinado momento da corrida eleitoral, por volta de agosto-setembro, o país entrou em um “modo desastre”: qualquer resultado possível levaria à deterioração da democracia. O sólido crescimento nas pesquisas não levava Bolsonaro à moderação; ao contrário, ele seguia investindo contra pilares da democracia —mídia tradicional, judiciário, sistema eleitoral, poder legislativo etc. Três cenários possíveis se configuraram então. 1 – Bolsonaro era derrotado no segundo turno, provavelmente por margem estreita. O candidato contestaria o resultado de modo enfático, ativando milhões de seguidores e as teorias conspiratórias já disponíveis, como as bobagens em relação à urna eletrônica. O novo governo nasceria, assim, sob o signo da ilegitimidade. 2 – Bolsonaro vence e negocia com o Congresso a construção de maiorias estáveis e a aprovação de suas agendas na economia, segurança e costumes, sem encontrar maiores resistências institucionais. Nesse cenário, a corrosão da democracia é gradual: direitos sociais e de minorias são retirados, liberdades civis são atacadas (de expressão, de cátedra, de associação, de manifestação etc.), e o caráter laico do Estado é gravemente corrompido. 3 – Bolsonaro é eleito e, passado um curto período de lua de mel, depara-se com institutos liberais e com o sistema de freios e contrapesos do sistema político, que tende a empurrar os governantes à negociação sob a ameaça de impasses institucionais. Hoje, este é o cenário que se mostra mais provável.
Nesse cenário, Bolsonaro começa o governo contando com algo em torno de 340 deputados e 45 senadores (ressalte-se a precariedade dessas estimativas por ora). Com elevada popularidade perante o legislativo, aprova parte de sua pauta em segurança pública, costumes e meio ambiente. Essas são áreas em que existe maior convergência entre as preferências do presidente e do legislador mediano no Congresso, possibilitando a construção de posições majoritárias sem maiores dificuldades. O problema começará quando a agenda econômica vier à baila —aí incluída a reforma da previdência. Primeiro, porque quase nada se sabe sobre as preferências do futuro presidente a respeito: é uma área em disputa entre os diversos grupos que compõem seu círculo mais próximo (e o economista Paulo Guedes não tem peso para construir acordos entre tais facções). Segundo, porque nada indica que a economia irá deixar de patinar em um futuro próximo, o que apenas reforça o estado calamitoso das contas públicas, limitando severamente a capacidade de investimento do governo. Terceiro, as preferências no Congresso são divergentes em relação a vários desses pontos —ajuste fiscal, reforma da previdência, privatizações, políticas de juros e de câmbio.
Soam ingênuas, nesse sentido, as ideias que apontam para um modus operandi de construção de maiorias baseado nas frentes parlamentares suprapartidárias (ruralista, religiosa etc.), em lugar da clivagem partidária, que é a que comanda o processo legislativo no Brasil. A bancada da bala apoia a redução da maioridade penal e a ampliação do foco dos excludentes de ilicitude; os policiais dessa bancada, com pautas corporativistas, darão suporte a uma reforma da previdência que englobe as polícias civil, militar e federal? Os entusiastas do mercado anseiam por uma ampla privatização; já combinaram com os militares (do executivo e legislativo), estatistas desde o berço? Decisões em matéria econômica partem de uma premissa simples: os recursos são finitos, e qualquer decisão envolve ganhadores e perdedores. Governar é, em grande medida, escolher quem ganha e quem perde. Quando começar a ficar claro quem se beneficia e quem paga a conta, a lua de mel se dissolve.
Mesmo nesse cenário, o legislativo pós-lua de mel ainda é um potencial (e mais óbvio) anteparo institucional ao avanço de medidas que atentem contra a democracia. Como instituto basilar de democracias liberais, a imprensa livre também seria um importante freio a avanços autoritários. No entanto, o acelerado processo de “zapização” do consumo de informação política tem aumentado o grau de impermeabilidade da sociedade aos veículos e conteúdos da mídia tradicional, colocando em xeque sua capacidade de se contrapor a um presidente truculento. É bastante provável que a comunicação do governo Bolsonaro continue a se valer de instrumentos de comunicação direta com a população, e que o presidente siga fustigando os órgãos mais críticos —numa estratégia de ataque preventivo, que serve para desacreditar de antemão as informações negativas e as denúncias que certamente virão.
Outros freios institucionais, porém, podem criar barreiras importantes a arroubos autoritários do presidente eleito. Setores do judiciário e do ministério público não aceitarão passivamente decisões e políticas públicas que atentem contra a Constituição, que firam liberdades civis e de minorias, ou que desvirtuem a laicidade do Estado brasileiro. Parte dos desvarios de Donald Trump nos Estados Unidos foi bloqueada dessa forma. Como revelado recentemente também em relação ao governo Trump, a burocracia que circunda o presidente pode representar outra fonte de resistência relevante. Burocracias públicas, como o funcionalismo estável dos ministérios brasileiros, não acatam docilmente decisões tresloucadas ou mudanças bruscas nos rumos de políticas que foram construídas ao longo de décadas. Como poucos, esses servidores são capazes de bloquear ou postergar ad aeternum a reversão de políticas ou a implantação de medidas mais controversas. Por fim, a alta hierarquia das Forças Armadas não parece majoritariamente disposta a embarcar em aventuras extra constitucionais lideradas pelo capitão que nunca foi exemplo de disciplina, trabalho árduo, e respeito à hierarquia militar. Orgulhosos pela liderança em diversos dos rankings de confiança da população nas instituições, preocupam-se desde já com a transformação da instituição em vidraça, a ser alvejada em caso de fracasso do governo vindouro.
Resta acreditar no funcionamento desses freios para impedir uma deterioração maior da democracia brasileira. Caso eles funcionem a contento, como o presidente e sua entourage miliciano-teocrática irão reagir? Na perspectiva mais otimista, Jair Bolsonaro será empurrado à moderação e negociação. Na mais pessimista, à radicalização e ao conflito, com consequências desastrosas à democracia brasileira.
Pedro Floriano Ribeiro é professor de ciência política na Universidade Federal de São Carlos. Ocupou a Cátedra Celso Furtado na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e foi Fulbright Visiting Professor no Kellogg Institute, da Universidade de Notre Dame (EUA).
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