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“A esquerda precisa voltar aos territórios. Não para levar uma verdade, mas para escutar”

Talíria Petrone (PSOL), nona deputada federal mais votada do Rio, é vista como uma das sucessoras de Marielle Franco, executada em março. Em entrevista, fala dos desafios de seu campo político

F.B.

Talíria Petrone (Niterói, 1985) acaba de ser eleita deputada federal pelo Rio de Janeiro com 107.317 votos, a nona mais votada do Estado, e engrossará a bancada do PSOL na Câmara, que passou de cinco para dez parlamentares após as eleições brasileiras deste ano. Não são poucos os que enxergam em Petrone a imagem de Marielle Franco, vereadora executada em 14 de março deste ano. Nas eleições municipais de 2016, foi a vereadora mais votada de Niterói, município vizinho ao Rio, e representava junto a Marielle, também eleita naquele ano, a ascensão das mulheres negras e periféricas dentro do espaço político institucional. Ela agora se vê no papel de levar adiante as pautas de sua amiga e de manter sua memória viva. Mas pondera: "Não sou Marielle. Isso é importante dizer, não só porque eu tenho a minha trajetória, a minha história, mas porque ela foi assassinada e não está mais aqui", explica em entrevista ao EL PAÍS. A conversa ocorreu ainda no início da campanha, sentada no chão de concreto de uma universidade, e por telefone depois de sua recente vitória.

A deputada federal eleita Talíria Petrone (PSOL).
A deputada federal eleita Talíria Petrone (PSOL).Facebook
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Pergunta. Quem é Talíria Petrone?

Reposta. Sou militante dos direitos humanos, na área da educação popular, que para mim é o instrumento que escolhi como transformação da realidade. Sou professora de história, formada na UERJ, com muito orgulho. Filha de músico e professora. Venho da zona norte de Niterói, do bairro de Fonseca. Não fiz movimento estudantil, como muitas pessoas. O que me fez me organizar como militante foi minha vida como trabalhadora. Trabalhei como telemarketing e dando aula, antes de me formar. Com a história de vida de dureza, e com a universidade, era aquela jornada tripla com uma indignação que já vinha de muito tempo. Acabei me filiando ao PSOL em 2009, com 24 anos.

P. Em sua primeira eleição, foi a mais votada para a Câmara de Vereadores de Niterói. Como foi esse salto para a política institucional?

R. Tem todo um acúmulo. Dei aula no Complexo da Maré, no cursinho pré-vestibular, e hoje sou professora licenciada de escola pública de lá. Educação popular sempre foi eixo de militância. A decisão da candidatura reflete esse acúmulo, mas reflete uma urgência. Nós mulheres já batíamos na tecla de como era importante ser mais representada no espaço institucional. Eu já era dirigente partidária, tinha coordenado campanhas, mas eu topar ser uma figura pública foi um processo e uma disputa dentro do partido também. Fiz uma campanha em Niterói sem dinheiro, com pouca gente e muito vinculada aos territórios. Uma campanha radical em sua demanda, nosso slogan era por uma Niterói negra, popular e feminista. As pessoas se sentiram representadas nesse projeto, em um espaço tão embranquecido e masculino.

P. O PSOL reflete essa realidade?

R. Todo coletivo reflete. Muita gente faz criticas ao PSOL como se fosse um partido de classe média. Tem gente na baixada construindo política, tem o setor de favelas, de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis... Agora, isso é insuficiente. O PSOL, como toda organização política, está muito distante da realidade do povo. E tem um grande problema em sua origem. Ele não tem uma origem popular, ele surge do rompimento de alguns parlamentares com o PT. O desafio é ampliar a inserção do PSOL em origens populares, como era na origem do PT e que foi abandonada. Ele está cada vez mais se enraizando em espaços de populares.

P. Mas a esquerda como um todo vem sendo muito questionada. Ela deixou de se conectar com a classe trabalhadora?

R. É bem complexo. O Brasil tem uma historia escravista, patriarcal, fundamentalista... As relações coloniais de poder não ficaram na época colonial, elas permanecem. Nosso capitalismo, portanto, é muito conservador, nos costumes, na hegemonia do pensamento... Isso não é um detalhe. A memória sobre a ditadura é falha e mal tivemos a universalização da educação. É uma democracia incompleta que não possibilita um rompimento com essa hegemonia conservadora. A origem do PT é popular, ele alavancou alguns direitos e programas, mas não rompeu com essa estrutura. E ele teve a oportunidade de avançar mais radicalmente no rompimento dessas estruturas coloniais de poder. Não fez nem a reforma agrária nem a urbana. Não enfrentou o modelo de segurança pública. O exército entrou na Maré durante o governo petista. Houve uma desmobilização popular no último período, com a cooptação de lideranças e uma institucionalização muito grande.

P. O que a esquerda precisa fazer daqui em diante?

R. Temos que voltar aos territórios, para as bases, mas não para levar uma verdade. Precisamos escutar essas pessoas que já produzem resistência todos os dias. Em especial num momento de negação da política. As pessoas têm raiva da política e têm razões para isso. Política ainda são esses homens engravatados e corruptos. Se não estamos nos territórios, não vamos desconstruir essa ideia de política. Política é pé no chão, é o preço do pão e do ônibus, é se vai ter hospital ou não. E a direita conservadora se apropriou da negação da política reforçando essa história conservadora.

Nossa tarefa é também conjugar as diferentes pautas. Não gosto das caixinhas: a classe tá aqui, o gênero aqui, a raça aqui, a sexualidade aqui. Sou radicalmente contra o termo identitário. Não considero que defender mulheres negras seja uma pauta identitária. Enfrentar a LGBTfobia não é uma pauta identitária. A classe trabalhadora do Brasil vem de uma história escravocrata. É impossível falar de reforma tributária, num país que quem ganha 5 salários mínimos tem a mesma alíquota de quem ganha 360, sem falar também da questão racial. A desigualdade social é negra e indígena. A gente precisa enfrentar o racismo conjugando com o enfrentamento da desigualdade social. Não é só uma questão de representatividade. Nem toda mulher negra me representa. Ela é importante, porque as mulheres precisam se ver, mas não basta eu estar lá simbolicamente. Eu preciso encampar a luta antirracista e feminista. O vereador Fernando Holiday, de São Paulo, é a expressão do limite da representatividade. Ela tem que vir com pautas que tem a ver com esse povo marginalizado. Não são pautas identitárias, mas sim de classe.

P. A direita é hoje hegemônica nas redes sociais, principalmente no WhatsApp. Como avalia o desempenho da esquerda nesse território?

R. Esse ainda é um território dominado pelas fake news, o que faz aumentar o discurso de ódio e conservador da extrema direita. Usamos muito mal as redes ainda, é um desafio da esquerda fazer disputa das redes sociais.

P. Como foi a campanha deste ano nesse ambiente de acirramento político? 

R. Foi uma campanha muito vinculada aos bairros, ao boca a boca. Tivemos pouco dinheiro, se  comparado ao padrão das campanhas, mas tivemos votos espalhados por quase todos os municípios do Rio. Mas também vimos nas ruas a polarização que o Brasil está vivendo. No primeiro dia de campanha fomos abordadas nas barcas, na primeira hora, indo de Niterói para Rio. Não estávamos panfletando, estávamos tirando uma fotografia com as companheiras. Mas o policial veio, apreendeu os panfletos, sacou uma arma e apreendeu nossos documentos. Quando eu disse que arma matava, ele disse que "ideologia matava mais". O tempo todo se referia a ele mesmo como "o Estado". Alegou que estávamos fazendo propaganda política irregular, quando na verdade só estávamos tirando uma fotografia e os panfletos estavam guardados. Fora que não cabe à PM fiscalizar isso. Acabei ficando 10 horas na delegacia. O delegado devolveu meus materiais, mas o policial tentou me impedir de sair de lá. Só saiu da porta quando o delegado disse que ia dar voz da prisão para ele.

P. Com a onda ultraconservadora que também ocupou o Congresso, quais serão os desafios de seu mandato? O que pretende levar para lá?

R. Muita das coisas que já fazíamos em Niterói, desde o debate de uma educação crítica, sem o Escola Sem Partido, até garantir os investimentos necessários em Educação e Saúde. Tem também o debate sobre segurança pública, mas vamos fazer isso tudo dentro de um Congresso mais conservador. Esse é um desafio danado, porque temos um aumento da bancada da bala que reflete o retrocesso democrático que estamos vivendo. Ao mesmo tempo, o PSOL ter dobrado a bancada mostra que a população também nos enxerga como renovação. Nesse momento a prioridade é enfrentar o avanço do fascismo e garantir uma maior articulação possível, para que a democracia no Brasil não seja enterrada por dentro das instituições. A tiro curto defendemos fazer a maior articulação possível [com outros partidos, inclusive de centro e centro-direita] para derrotar o ódio e a violência e garantir a democracia. Precisamos de uma frente antifascista. Esta é a tarefa principal.

P. Este avanço da bancada da bala se deu sobretudo no Rio...

R. O Rio é o laboratório disso. Bolsonaro é daqui e a expressão dele é enorme. Seu candidato [o ex-juiz federal Wilson Witzel, que disputará o segundo turno com Eduardo Paes] diz que vai dar licença para matar e que vai extinguir a Secretaria de Segurança Pública. Isso dá autonomia e poder para as polícias, o que significa, num Estado em que matam e morrem muito, um aprofundamento da licença pra matar. Querem um estado militarizado e policial.

P. Você se vê no papel de levar o legado de Marielle ou dando prosseguimento as suas lutas?

R. Temos que ter muito cuidado. A Marielle foi assassinada. A consigna "Marielle Vive" é necessária porque é um instrumento de mobilização das mulheres que ficaram sem uma referência: mataram uma vereadora preta, favelada, que amava mulheres, defensora dos direitos humanos, socialista. Nesse sentido, o que vive são suas pautas. Por um lado eu me sinto na responsabilidade de não deixar sua memória morrer, mas eu não sou Marielle. Isso é importante dizer, não só porque eu tenho a minha trajetória, a minha história, mas porque ela foi assassinada e não está mais aqui. É natural que as pessoas façam essa transferência, é um orgulho que lembrem da Marielle quando me veem. Mas precisamos lembrar que ela foi executada: para pedir justiça por Marielle e Anderson, e entender a urgência do momento, de levar as pautas dela adiante.

P. Como você está lidando com essa perda?

R. É uma dor que não melhora. A gente lida com ela. Tem uma companheira que fala que a existência de mulheres negras é uma existência em tragédia. É uma dor pessoalmente e coletivamente muito profunda. Nos conhecemos na Maré quando fui professora lá, e essa amizade se reforçou com o mandato. Éramos as únicas mulheres do PSOL com perfis muito semelhantes com mandato. Decidimos no mesmo momento a candidatura. Ficou um vácuo enorme.

P. A morte dela foi determinante pra que você se lançasse candidata a deputada federal?

R. Já havia conversas sobre isso. Mas a execução da Mari trouxe um senso de responsabilidade e de urgência nesses tempos, de que não dá para ficar no nível local. É preciso manter a relação com o território a nível local, mas precisamos fazer disputa a nível Brasil, América Latina. É muito maior.

P. Você tem mais medo do que antes? Sua rotina mudou?

R. Eu ia para a Câmara Municipal de bicicleta, de ônibus... Sou uma pessoa muito da rua, de circular pela cidade. Eu já sofria muitas ameaças, desde que fui eleita, e algumas mais graves. Um homem ligou para a sede do PSOL sistematicamente dizendo que ia me matar, já foram na nossa sede armados ameaçar... A proximidade com o perfil de Marielle fez com que o Estado entendesse que precisamos de segurança preventiva e um carro blindado. Mas no primeiro dia de campanha, o Estado tirou minha escolta, dizendo que não precisava mais, que seria privilégio e nada justificava. Continuo com um blindado pago pelo partido. É uma mudança radical de rotina, mas não tenho medo. Ele hoje foi transformado em sangue no olho.

P. O que acha está por trás de sua execução?

R. Quem mandou matar Marielle tem relação com poderes do Estado. Todo crime organizado tem relação com o Estado. O tráfico de drogas, a milícia... Se temos um modelo de segurança pública que criminaliza o menino de chinelo com fuzil na boca, temos que entender que ele não é o responsável por essa lógica. O que é milícia dominando os territórios? O braço do Estado, o poder econômico e o poder armado. Essa tríade tem que ser enfrentada. Vamos continuar falando disso. Não sei se foram as milícias que mataram Marielle, mas não tenho dúvida que tem relação com o Estado. E precisamos de pressão internacional. Um crime como esse, político e complexo, tem gente muito grande envolvida. É um crime político que expressa o quanto vai mal a democracia brasileira, que não se completou.

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