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Ao fio dos dias
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O governo dos juízes

Enfraquecimento das instituições, que também afeta a Justiça, tem muito a ver com a suposição de que o fim justifica os meios

Juan Luis Cebrián
EVA VÁZQUEZ

As próximas eleições no Brasil serão a consumação de um golpe à democracia? Essa pergunta foi feita pelo auditório durante um colóquio realizado em Madri, do qual participaram entre outros o ex-chanceler Celso Amorim, o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González e o juiz Baltasar Garzón. Diante da eventualidade da vitória do neofascista Bolsonaro, os presentes se somaram de diversas maneiras aos pedidos de liberdade para Lula, condenado a doze anos de cadeia e na prisão desde abril. Depois de Dilma Rousseff ter sido expulsa do poder por um impeachment injusto, o processo político brasileiro se viu no meio de inúmeros escândalos de corrupção que afetam líderes de todos os partidos, incluindo o atual presidente Temer. Existem consideráveis indícios de que há anos vemos uma conspiração dos setores mais reacionários do país para retirar o PT do poder pela utilização de artimanhas legais e a manipulação da opinião pública. Como consequência, González fez a seguinte reflexão: quando os processos políticos são judicializados, a Justiça irremediavelmente acaba se politizando. É o que se denomina, acrescentou, o Governo dos juízes.

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Semelhante asserção evoca necessariamente os acontecimentos da Catalunha. A progressiva ausência do Estado na comunidade autônoma e o assombro do primeiro-ministro Mariano Rajoy diante do que acontecia acabaram por colocar a magistratura no centro do debate político. Naturalmente a situação brasileira e a catalã nada têm a ver entre si, pois em nosso caso o golpe à democracia foi tentado pelos políticos que hoje estão presos por suposta sedição e rebelião. De maneira que os tribunais se viram impelidos a acabar com a insurreição contra o Estado, organizada e alimentada na Generalitat (sede do Governo catalão). Mas persiste a coincidência de que promotores e juízes, não deputados e governantes, tenham assumido o protagonismo em litígios que originalmente eram estritamente políticos. Em qualquer circunstância, a legislação penal é o último recurso a se utilizar para defender a legalidade, não o primeiro, como aconteceu durante o procés catalão. Das inevitáveis consequências de sua aplicação podem surgir situações ainda mais complexas do que as que já sofremos. A responsabilidade continuará sendo dos demagogos que excitaram a população com mentiras e iscas, e dos dirigentes incapazes de governar a nave do Estado em momentos de dificuldade. Mas não faltará quem se preocupe, com razão, pelos danos colaterais que o Governo dos juízes ocasionará.

A politização da Justiça não se produz pela ação dos tribunais e sim pela omissão dos políticos e a tendência do Executivo em interferir nas decisões judiciais. Dias atrás escutamos uma enxurrada de declarações de ministros no sentido de que gostariam que os acusados de rebelião não estivessem em prisão preventiva, e até mesmo sugeriram promessas de indulto aos que ainda não foram julgados e condenados. Provavelmente pretendiam aplacar a pressão independentista, mas a única coisa que conseguiram foi aumentar a polarização da opinião pública, já vítima de toda a espécie de boatos e mentiras. A separação de poderes e o respeito à lei são base inevitável do exercício democrático. Quem do poder tentar perpetrar a morte de Montesquieu deve ser lembrado de que essa equivale ao fim das liberdades. Certamente, o mais aguerrido dos embusteiros que tentam eliminar a independência judicial, pela que ironicamente clama, é o governador Joaquim Torra. Exige constantemente ao Governo de Madri a retirada das acusações contra os sediciosos, como se a Moncloa (sede do Governo espanhol) pudesse tomar semelhante decisão. E hoje se dispõe a comemorar o primeiro aniversário de um plebiscito ilegal e ilegítimo, em permanente desafio à metade de uma população submetida a seu desgoverno e vítima do colapso de suas instituições. O pior é que a deterioração também ameaça o funcionamento das do Estado.

Uma das poucas que pareciam se livrar, exatamente a Justiça, se vê submetida agora a toda a classe de insídias e desclassificações, politizada como está pela despolitização dos políticos. Não só nos casos das tentativas separatistas: também em assuntos sobre violência de gênero, corrupção administrativa e até sanções aos plagiadores, a apelação à pressão popular sobre o exercício da justiça e a aplicação de critérios improvisados sobre a moralidade da liderança distorcem novamente o panorama. Não citarei exemplos, mas pedir a demissão de alguém por dizer de outra pessoa em uma conversa privada que é um maricas é em si mesmo uma idiotice, e me atrevo a dizer que chega a ser uma frescura. Desde que Cela publicou seu dicionário secreto, nós espanhóis nos tornamos um dos povos mais mal-educados do mundo, com uma enriquecedora variedade de palavras de baixo calão em nosso idioma para muitos outros dicionários. Tentar diminuir sua utilização seria o anseio dos redatores de um manual de bons costumes. Mas o puritanismo cínico de que se orgulham por criticar seu uso senadores, deputados, faladores de botequim e libelistas digitais não faz outra coisa senão minar ainda mais os alicerces da democracia representativa.

O debate político se embruteceu e se degradou. O Governo procura atalhos e ardis para aprovar o orçamento e a oposição se entrincheira em considerações rasteiras para impedi-lo. Somos privados, portanto, de uma discussão ordenada sobre o conteúdo do mesmo e as razões para apoiá-lo ou combatê-lo. O enfraquecimento das instituições, sua progressiva deterioração, tem muito a ver com a suposição de que os fins justificam os meios, a mais antidemocrática de quantas podem ser imaginadas. Transformar a responsabilidade política em uma mera luta pelo poder, seja para mantê-lo ou para abatê-lo, constitui mais uma contribuição ao desgaste do regime de 78. A polarização agitada pelas redes sociais, vociferada em uníssono nas Cortes e nas televisões, acabará por minar os alicerces de nossa democracia representativa. A ausência de reflexão intelectual entre os que nos desgovernam e os que querem nos desgovernar é, por isso, lacerante.

Folheando um estudo sobre a correspondência privada de Andrés Saborit, biógrafo de Besteiro, anotei recentemente três observações de exímios republicanos que foram perseguidos e exilados. Clara Campoamor elogiava em 1962 em Lausanne a figura de dom Julián, de quem exaltava suas principais características: “Força moral e elegância espiritual”. Luis Jiménez de Asúa, o mais renomado estudioso de Direito Penal de todos os que existiram no Direito espanhol, comentou em Buenos Aires em 1968 que na opinião de Merceditas, sua esposa cubana, “a Espanha não é a Europa. A Espanha é a Espanha e mais nada”. Claudio Sánchez Albornoz, em 1973, também na Argentina, se lamentava: “Não posso me esquecer dos erros e disparates que os homens da República fizeram. Que nosso exemplo sirva para os que em um dia distante voltarem a repetir nossa aventura”.

A Transição conseguiu desmentir as opiniões de Merceditas talvez porque o exemplo de dom Claudio tenha servido de bússola aos seus responsáveis. Devemos nos perguntar então onde estão nas Cortes a força moral e a elegância espiritual de Besteiro. Sem pessoas como ele não demorará a surgir entre nós o Bolsonaro da vez. Em Barcelona já começa a mostrar a cabeça.

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