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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O Incêndio da Razão Comum

O Brasil é um prisioneiro feliz da modernidade. Deseja o novo, a utopia, a revolução e ignora o que as gerações anteriores lhe concederam como patrimônio

Polícia Federal investiga causas do incêndio no Museu Nacional.
Polícia Federal investiga causas do incêndio no Museu Nacional. Silvia Izquierdo (AP)
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O Brasil ignora investimentos na proteção e promoção da sua memória há muito tempo. Tanto que até já esqueceu que precisa fazer isso. São necessárias catástrofes para lembrar. Ocorre que infelizmente se transformam em espetáculos midiáticos e raramente trazem mudanças.

O colapso do edifício Wilton Paes de Almeida no Centro de São Paulo trouxe à tona a situação de propriedade públicas e privadas ociosas nos centros urbanos, a luta pela moradia e o direito à urbanidade. Já esquecemos. Há um mês foi anunciada aumento do teto de uso do FGTS, passando para 1,5 milhão, para aquisição de imóveis novos. Este valor passa muito longe das necessidades da moradia social. Comemorou o setor imobiliário pela possibilidade de aquecimento do mercado. Mais prédios serão construídos em bairro novos e ermos nas cidades brasileiras. Nenhum prédio será reabilitado. Tão pouco seu reuso será para dar prioridade a quem precisa. O recurso público capitalizando poucos.

O Brasil é um prisioneiro feliz da modernidade. Deseja o novo, a utopia, a revolução e ignora o que as gerações anteriores lhe concederam como patrimônio, provavelmente porque estas eram imperfeitas aos olhos da elite intelectual, sedenta de novos lugares e territórios para aplicar suas ideologias.

Um dos cincos maiores museus de história natural do mundo, o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro pegou fogo no dia 2 de Setembro. Vinculado à UFRJ, o museu é um centro de pesquisas de arqueologia, antropologia, paleontologia, botânica e inúmeras outras áreas. É um centro de formação de conhecimento e de ampliação. Os prenúncios de uma catástrofe datam desde muito. Anos 80, anos 2000, 2015. São inúmeros os relatos. O incêndio é um evento cronologicamente arquitetado por décadas de confusão e ineficiência.

Infelizmente a UFRJ demonstra profunda incapacidade de gerir seu patrimônio imobiliário cuja grande parte é também de alto valor cultural. Já foi perdida a Capela de São Pedro de Alcantara em 2011, no campus da Praia Vermelha. Há décadas a antiga Escola de Eletrotécnica esfarela em praça pública. Literalmente. É vizinha da Praça da República no Centro do Rio. O prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, também conhecido como Reitoria, sofreu incêndio nos andares superiores em 2016. A biblioteca da FAU passaria por reforma. Ambos estão fechados até hoje. O prédio funciona precariamente. Do mesmo modo, vergonhosamente, segue fechado o Canecão. O Colégio de Altos Estudos funciona com maior parte ociosa e obras não concluídas, na Avenida Rui Barbosa. O IFCS funciona precariamente. Após décadas de abandono está em recuperação finalmente o Hospital São Francisco de Assis na Av. Presidente Vargas.

Não se trata de golpe, de estatismo, ou avanço sobre as conquistas progressistas. É somente a velha e conhecida incompetência.

As brasas do Museu Nacional aguardam o sopro da disputa eleitoral, mas o que evidenciam na verdade é o conturbado encerramento de um ciclo histórico e político onde falhamos todos e todas as matizes. Estamos incapazes de conjurar o século XXI para o Brasil. O pragmatismo político não conseguiu edificar um arranjo social capaz de avançar autonomamente. Do mesmo modo, a sociedade carrega ainda dentro si os embriões da ignorância que alimenta morais vacilantes. Exatamente onde poderia a memória, os centros históricos, os museus, a cultura promover a transfiguração, pela educação aplicada, pelo conhecimento ampliado, pelo respeito ao diferente, dando camada amorosa à cidadania utilitária, falhamos.

Cidades sem densidades, condomínios, favelas, grades, ilhas e isolamentos impedindo acesso à urbanidade, o fenômeno maior e gerador do bem público. O Rio sofre mais pois ele congrega os acervos da nação, os experimentos estéticos, as invenções sociais. A cidade descapitalizada é ainda fantasma de um sonho de nação aberta ao mundo. Isola-se o Brasil com a perda do Museu Nacional. Estamos desmemoriados na face da Terra.

O serviço público serve a si mesmo. O espaço público é loteado por empresas e ambulantes. Políticos não precisam entregar suas promessas. Teocracias governam, milícias fazem loteamento e ignorantes orgulhosos berram como candidatos à Presidência da República. Líderes populares presos por corrupção são beatificados. Privilégios são exibidos com toga. Leis não precisam cumpridas. Acervos não precisam ser apreciados.

Historiadores do futuro chamarão o incêndio do Museu Nacional como o fim da Nova Democracia Brasileira. Conseguiremos progredir?

Poderemos se a ideia de bem público para todos for destituída de signo ideológico, sendo o que simplesmente é: algo que pertence a todos, feita por todos e mantida por todos. Comunitariamente concebida e preservada. Como um acervo de identidade coletiva. Enquanto o bem comum for propriedade de um partido, de uma tônica, de um líder, ou uma fé, arderá a fagulha de novos incêndios absolutos sobre a razão.

Washington Fajardo é arquiteto e urbanista. Foi responsável pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Eduardo Paes

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