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Coluna
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Celular: aproximações entre fotógrafo e fotografia

Se para os fotojornalistas o celular se tornou uma ferramenta indispensável, para as pessoas retratadas proporcionou uma aproximação mais amigável

Oscar Ortiz Serafin segura a foto de seu filho Cutberto Ortiz Ramos em uma sala de aula transformada em dormitório para as famílias dos alunos desaparecidos da Escola Rural de Ayotzinapa.
Oscar Ortiz Serafin segura a foto de seu filho Cutberto Ortiz Ramos em uma sala de aula transformada em dormitório para as famílias dos alunos desaparecidos da Escola Rural de Ayotzinapa.Adriana Zehbrauskas

Quem somos nós sem nossas memórias? Com esta inquietante reflexão a renomada fotógrafa brasileira radicada no México Adriana Zehbrauskas mergulhou, por cerca de um ano, na intimidade das famílias dos 43 estudantes desaparecidos em 2014 na região de Hueuetonoc, um dos 81 municípios de Guerrero, o mais violento estado mexicano. Cercada de assassinatos e plantações de papoulas, ela criou o projeto Family Matters que documenta fotograficamente as relações entre memória e identidade da comunidade da região. “'Por que você está tirando minha foto?' Me perguntou uma mãe furiosa enquanto eu fotografava. Lá as pessoas tem medo de sequestros, de se exporem. É muito delicado levantar uma câmera, ela assusta as pessoas em muitas situações” conta ela.

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Adriana cobriu as consequências do sangrento episódio na escola rural de Ayotzinapa para diversos veículos de imprensa e a partir daí criou vínculos profundos com a população local que se estenderam por mais de um ano. “Produzindo um trabalho multimídia na região perguntei para as famílias dos desaparecidos sobre imagens de seus entes e descobri que não possuíam. Apesar da abundância de celulares me dei conta que muitos posavam para um retrato pela primeira vez” relata.

Assim como no Brasil, no México os fotógrafos ambulantes que percorrem regiões remotas incumbidos de produzir os tradicionais retratos de família também estão desaparecendo. Parece um oficio do século passado que se esvai de mãos dadas a outras ocupações profissionais, mas, na verdade, sua urgência continua pulsante e contemporânea. Como pensar na construção da identidade de um povo e a manutenção de suas tradições culturais sem meios capazes de assegurar sua história e seus costumes? Para Zehbrauskas a ausência de registros fotográficos dos estudantes desaparecidos impõe uma segunda perda para as famílias de Guerrero cuja memória dos entes é embaçada com o tempo. “As pessoas me paravam na rua para pedir seus retratos. Nesse sentido, o celular é uma ferramenta maravilhosa porque permite que elas vejam rapidamente como ficaram as fotos que faço”, conta a fotógrafa que se espanta com a ambiguidade das relações sociais criadas pelos telefones portáteis. Se, por um lado, ele é um instrumento de trabalho para a documentação fotográfica; por outro, ele não proporcionou um registro capaz de conter o desaparecimento das memórias de uma geração inteira.

Munida de uma pequena impressora, Adriana anunciava nos alto falantes da rádio popular dos pueblos de Guerrero que estava na cidade e disponível para fazer retratos de família gratuitamente. “O mínimo que posso fazer para estas pessoas tão generosas que me acolhem em sua intimidade é imprimir seus retratos como um gesto de retribuição”, diz Adriana. Equipamentos fotográficos tradicionais nas coberturas jornalísticas comprovadamente causam, a longo prazo, graves lesões à saúde dos profissionais. São pesados, exigem força física e resistência para carregá-los horas a fio nas jornadas de trabalho. É nesta conjuntura que cresce mundialmente o uso dos celulares na realização de projetos fotográficos autorais. Em 2015 a fotógrafa foi premiada pelo projeto Family Matters com o Getty Images Instagram Grant que financia a execução e a continuidade de projetos fotográficos. “É um câmera como qualquer outra. Percebi isso quando publiquei uma foto na capa do jornal de domingo feita com meu Iphone”, diz Adriana que alimenta sua conta no Instagram quase que exclusivamente com fotos tiradas em seu aparelho telefônico. “Meu Instagram é muito mais importante do que meu website. Lá sou livre do compromisso e do peso psicológico que temos quando cobrimos o factual para a imprensa” pontua a fotógrafa. A seu favor, embora ainda sofra com questões técnicas como a geração de ruído nas fotografias tiradas em ambientes com pouca luz, os telefones são discretos e populares e, portanto, não assustam comunidades aversas aos registros fotográficos. A tão cobiçada intimidade entre fotógrafos e as pessoas retratadas se encurta rapidamente porque ambos compartilham da mesma linguagem que os celulares oferecem. Nesse sentido, a universalização da imagem estreita os laços amigáveis entre ambos e aproxima universos aparentemente diferentes.

Adriana faz parte de uma onda de colegas de profissão que perceberam, nos últimos anos, que sua relação com a fotografia estava profissional demais, porque saíam para fotografar apenas quando pautados e carregavam quilos de equipamento. A revolução em curso proporcionada pelos telefones transformou radicalmente a forma como nós fotógrafos enxergamos a fotografia e lidamos com ela no dia a dia, porque permite o exercício constante da prática fotográfica. “É uma relação que se retroalimenta na medida em que transporto a liberdade criativa com que fotografo o cotidiano no celular para a produção de trabalhos mais profissionais feito com as câmeras convencionais nos assignments”. Se para os fotojornalistas o celular se tornou uma ferramenta indispensável, para as pessoas retratadas nas reportagens, que muitas vezes têm pouca compreensão da mídia impressa, proporcionou uma aproximação mais amigável onde a resistência ao desconhecido se desarma gradualmente. “Entro no site do jornal e explico detalhadamente o meu trabalho”, conclui Zehbrauskas. Viva a democracia tecnológica!

Victor Moriyama é fotógrafo e colabora com os mais importantes jornais do mundo. Ele escreve quinzenalmente sobre fotografia no EL PAÍS (www.victormoriyama.com.br).

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