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Coluna
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Na São Paulo de Nacho Doce, pérolas garimpadas no caos da metrópole

“Não preciso ir para a guerra ou para a Copa do Mundo para fazer boas histórias. Esta condição que São Paulo oferece tem um valor inestimável”, diz fotógrafo espanhol radicado na capital paulista

Pixador em São Paulo
Pixador em São PauloN.Doce (Reuters)

“Isso não se faz! Cabrón!”, esbravejava inconformado o fotógrafo espanhol Nacho Doce contra um grupo de policiais que agrediam uma moça durante um dos muitos protestos que marcaram o ano de 2013 no Brasil. A onda de manifestações, que teve seu auge em São Paulo e logo tomou conta do país, questionava o aumento das tarifas do transporte público, condenava a corrupção endêmica da classe política e reclamava os gastos astronômicos dos estádios da Copa do Mundo que aconteceria no ano seguinte. O nível de concentração e envolvimento do fotógrafo com aquele momento histórico saltava aos olhos dos manifestantes e dos colegas de profissão.

Enquanto parte da categoria dos fotojornalistas colocava o papo em dia e reclamava das péssimas condições nas redações aguardando o momento do confronto já esperado entre Black Blocs e policiais, Nacho não desgrudava o olho do visor nem por um segundo acompanhando cada passo da multidão para construir sua linha narrativa. Sabia da importância épica daqueles eventos, todos sabíamos, mas a busca por imagens fortes que traduzissem a intensidade que vivíamos nas ruas da região central parecia uma obsessão que causava estranheza e admiração nos demais companheiros. Não era comum ver fotógrafos tão empenhados por aqui.

A dedicação apaixonada pelo ofício é evidente se olharmos com mais atenção para os temas que permeiam seu trabalho e revelam aspectos complexos da realidade paulistana. Suas fotografias fogem das imagens burocráticas feitas muitas vezes nas agências de notícias focadas em atender o “hardnews”. “Não estou nessa máquina de produção competitiva. Vejo São Paulo ou qualquer outra cidade do mundo como uma grande montanha em que há ouro no final e precisamos percorrer cada declive”, diz o fotógrafo que há 15 anos trabalha para a agência Reuters e mantém a paixão pela profissão acesa como no início de sua extensa carreira. “Utilizo a câmera para aprender, para estar nos lugares, um emaranhando de coisas que se misturam ao jornalismo. A câmera não manda em mim e sim o contrário, a utilizo para me expressar e ter experiências, este é o fotojornalismo em que acredito. É uma mistura de paixão e trabalho” sintetiza. Há uma tendência embrionária nas agências internacionais de jornalismo de produzir não apenas o factual mas investir em histórias locais que traduzam aspectos globais relevantes.

E as reportagens fotográficas feitas por Nacho Doce são um marco no fotojornalismo paulistano. “Conheci o trabalho do Nacho nas publicações brasileiras em 2012, de lá para cá nunca parei de admirá-lo. Considero-o uma referência obrigatória no fotojornalismo nacional”, comenta o fotógrafo Avener Prado. Nacho observa a realidade da capital paulista a partir de uma lupa milimétrica capaz de eleger com precisão situações cotidianas que sintetizam transformações significantes do modo de vida dos brasileiros. “Quando me dei conta já tinha feito 30 reportagens sem sair daqui. Esta cidade é completamente alucinante, não tenho palavras para ela. Gosto muito”. Nacho mergulha nas profundezas deste mar caótico de informações da maior cidade da América do Sul para procurar histórias que brilham como pérolas em meio ao cinza. “Acho lindo poder fazer grandes histórias perto de sua casa. Não preciso ir para a guerra, para a Copa do Mundo ou outras zonas de conflito para fazer boas histórias. E esta condição que São Paulo oferece tem um valor inestimável” diz.

Na contramão de reportagens superficiais sobre temas já saturados que constantemente nos deparamos ao folhearmos jornais diários ou vasculharmos os bancos imagéticos das agências de jornalismo, os “features” como chamam os americanos, feitos com profundidade e trabalho de médio e longo prazo ainda são pouco valorizadas no Brasil em comparação a Europa e Estados Unidos. “Vejo que há uma nova geração muito talentosa que está transformando a fotografia brasileira, são estilos interessantes e com um olhar diferente mas faltam investimentos aqui que os impulsionem” avalia o fotógrafo que critica a falta de espaço para a os jovens talentos do jornalismo.

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Se por um lado podemos apertar o disparador da câmera de forma automatizada, reclamar da crise midiática diariamente e cumprir horário nas já esvaziadas redações sem refletir sobre a qualidade do jornalismo que praticamos, por outro é possível viver a paixão pela profissão e sua nobreza de maneira cotidiana e intensa. “Quando cheguei tive uma sensação muito interessante de ter uma autopista sem carros pela frente. Não tive que pagar pedágio porque estava livre para propor as reportagens, e isso é maravilhoso” diz o fotógrafo espanhol. Com imagens que roubam o ar com o impacto de um soco na boca do estômago, Nacho Doce nos relembra do amor primitivo pelo fotojornalismo e a necessidade de narrar visualmente as transformações profundas na sociedade.

Em sua jornada de autor ele investiga, como faziam os bons repórteres antigamente, de forma autônoma e sensível, as entrelinhas deste emaranhado ruidoso que é São Paulo e as histórias que gritam pelas ruas. Nos alerta para a beleza do cotidiano e a força de temas que permanecem invisíveis para boa parte da população. “Um dia o encontrei num ônibus no centro da cidade e ele estava radiante com fotos que tinha feito de crianças e homens pulando no chafariz da Praça da Sé”, relembra Avener.

É inegável que a urgência dos acontecimentos factuais ditam a prioridade da imprensa internacional mas as histórias fabulosas que acometem a vida cotidiana e passam despercebidas neste planeta globalizado parecem ser uma tendência midiática e revelam aspectos muito interessantes da humanidade. Se no Brasil a cultura das reportagens fotográficas ainda é embrionária dentro das redações, nós, fotógrafos que acreditamos nas narrativas visuais, podemos ser otimistas ao nos inspirarmos no trabalho de Nacho. O termômetro de sua influência no fotojornalismo paulistano já aponta mudanças positivas que ficarão ainda mais evidentes nos próximos anos. Que venham as mudanças que valorizam o fotojornalismo.

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