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“Há uma inveja equivocada do futuro”: astrofísica contra as utopias que nasceram em séries de TV

Os vaticínios da ficção científica e do jornalismo não foram em geral muito acertados. Ainda bem

Jaime Rubio Hancock
Em ‘De Volta para o Futuro 2’ havia carros e skates voadores.
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O futuro decepcionou muita gente. Pouco importam os avanços em saúde, educação, a internet… Ainda se ouvem queixas pela ausência de carros voadores. Katie Mack, astrofísica da Universidade da Carolina do Norte, dedicou uma série de posts no Twitter para discutir alguns dos motivos pelos quais aquele futuro imaginado na ficção científica não era, afinal, uma ideia tão boa como nos parecia quando éramos crianças. “Amigos”, diz ela no início do thread, “precisamos falar sobre o futuro. Não faz sentido se queixar por não ter jetpacks [mochilas propulsoras] nem carros voadores. As velhas séries de televisão criaram uma geração que está tendo uma inveja equivocada do futuro imaginado na ficção científica”.

Em seu thread, explica que os jetpacks já existem, mas que não são usados porque são caros, ruidosos e muito perigosos. “Quer chegar rápido a um lugar? Em muitas cidades você pode caminhar pela rua e alugar uma moto elétrica com seu celular. Aproveite.” Os carros voadores também são uma má ideia: andar de carro já é suficientemente perigoso para ainda por cima adicionar foguetes: “Tire brevê de piloto de helicóptero”, aconselha.

Além disso, cabe mencionar que já houve mais de 300 modelos de carros voadores funcionais. Mas só podem decolar e pousar em aeroportos; na cidade, precisa ir rodando. Ainda bem: imaginemos um acidente entre dois carros voadores. Não só é perigoso para quem viaja neles, mas também para quem está tranquilamente passeando lá embaixo.

Sim, ela lamenta que não possamos nos teletransportar: “Não parece haver maneira de teletransportar a matéria sem desmontá-la e reconstruí-la do zero”. Idem com as viagens a velocidade maior do que a luz e os buracos de minhoca, “que não parecem estáveis”. Esses buracos seriam túneis que conectariam dois pontos do espaço-tempo. E o que dizer das colônias na Lua e em Marte? A radiação obrigaria a viver em cavernas e túneis: “Mesmo assim, eu iria sem pensar duas vezes”.

Mack louva as impressoras 3D (embora sejam lentas) e a tecnologia da comunicação, especialmente as chamadas de vídeo, que “finalmente são algo de verdade que as pessoas usam”. Além disso, vêm “com todas as outras coisas incríveis que nossos supercomputadores de bolso fazem”.

As interfaces que comunicam o cérebro com os computadores “são cada vez mais impressionantes, embora usadas sobretudo em tecnologia de assistência, em vez de lhe poupar do problema de falar com seu relógio ou o que for. Estou um pouco nervosa com o rumo que isto poderia tomar, para ser sincera”. Quanto à energia por fusão nuclear (que seria mais segura e limpa que a energia nuclear atual) “há meio século está sempre a uma ou duas décadas de se resolver”. Enquanto isso, “a energia solar e eólica são bastante boas”.

A imortalidade “seria uma ideia terrível, mas nos saímos bastante bem em erradicar um monte de doenças e prolongar a vida no último século, mais ou menos. De quantos anos necessitamos? Melhor a qualidade que a quantidade”. Embora alguém poderia lhe responder com uma piada: quem quer viver 100 anos? As pessoas de 99, ora!

“Os poderes mentais também seriam uma má ideia”, acrescenta. “Melhor nem trabalharmos nisso. Já é bastante ruim que tenhamos algoritmos que analisam todos os nossos movimentos na internet. Se existissem os poderes mentais, provavelmente seriam como anúncios prévios dos vídeos, dos quais não se pode sair, só que para os nossos pensamentos”. E os aliens assassinos não deram as caras. “Acho que podemos estar todos de acordo em que isso é algo bom.”

O futuro da ficção científica

Como já mencionávamos neste artigo, os vaticínios da ficção científica e do jornalismo não foram em geral muito acertados. Com honrosas exceções, como o ano 2014 que Isaac Asimov imaginou em 1964. Neste artigo, o autor falava de comida pré-cozida, energia solar e missões não tripuladas a Marte.

Um dos motivos para explicar os erros é que, ao tentar prever o futuro, muito frequentemente extrapolamos a partir do presente. Ou seja, imaginamos o mesmo, só que mais vitaminado. Temos carros? Então que haja carros voadores. Falamos à distância com a voz? Pois falaremos com voz e vídeo.

Mas a inovação nem sempre é uma evolução do que já temos, e o progresso tecnológico pode chegar por um caminho ao qual não prestamos muita atenção até agora. Portanto, é difícil imaginar coisas para as quais não há um modelo prévio. Por exemplo, embora em Star Trek apareça algo semelhante a celulares com vídeos, não vemos o capitão Kirk usando esse mesmo aparelho para abrir um thread no Twitter relatando sua última missão.

Além disso, é preciso levar em conta que os autores de ficção científica frequentemente estão mais preocupados com o presente do que com o futuro, sobretudo (embora não só) no caso das distopias. Em seu romance 1984, Orwell não imagina os anos oitenta, e sim adverte para os riscos que estão sendo discutidos na sociedade em que ele vive, nos anos quarenta. E, para citar outro exemplo, Margaret Atwood já disse sobre O Conto da Aia (publicado em 1984, por sinal), que “quando o escrevi me assegurei de que não incluísse nada que os seres humanos não tivessem feito em algum lugar e em algum momento”. Frequentemente, imaginar o futuro (com ou sem carros voadores) é uma desculpa para analisar o presente.

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