_
_
_
_
_

Ortega ataca o último bastião da resistência estudantil na Nicarágua

Seguidores da Frente Sandinista lançaram um ataque contra a Universidade Nacional, deixando dois estudantes mortos e 16 feridos. Enquanto isso, governante fazia chamamento à paz em Masaya

Carlos S. Maldonado
O presidente do Conselho Superior da Empresa Privada na frente da Diretoria de Auxílio Judicial em Manágua.
O presidente do Conselho Superior da Empresa Privada na frente da Diretoria de Auxílio Judicial em Manágua.Carlos Herrera

Em uma clara demonstração de força, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, mobilizou na sexta-feira seus simpatizantes até Masaya, a cidade rebelde que resistiu aos ataques das hostes da Frente Sandinista. Dali o governante fez um chamamento à paz enquanto grupos armados atacavam os estudantes entrincheirados na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (UNAN), em Manágua, último bastião da resistência estudantil, deixando pelo menos uma dezena de feridos, alguns deles com gravidade. As imagens transmitidas pelos jovens atrás das barricadas mostravam vários deles atendendo os feridos, ao mesmo tempo em que outros pediam auxílio. Silvio Báez, bispo auxiliar de Manágua, denunciou que os ataques se estenderam a uma paróquia próxima ao campus, onde alguns universitários tinham se refugiado e os feridos eram atendidos. Dois estudantes morreram e 16 ficaram feridos durante as 12 horas de assédio dos grupos armados. “Convidamos aqueles que têm pensamentos políticos diferentes, aos produtores e camponeses, às empresas, à microempresa, a tomarmos o caminho da paz”, dizia Ortega enquanto isso em Masaya.

Mais informações
351 mortos: o que está acontecendo na Nicarágua do esquerdista Daniel Ortega
Nicaraguenses saem às ruas contra Ortega
Ortega intensifica repressão e ao menos 17 morrem em 24 horas na Nicarágua

Na cidade, organizações de direitos humanos denunciam que depois que o presidente deixou a localidade policiais antidistúrbios e grupos clandestinos fortemente armados atacaram os manifestantes. Álvaro Leiva, secretário executivo da Associação Nicaraguense Pró-Direitos Humanos (ANPDH), assegurou ao EL PAÍS que foram registrados enfrentamentos entre esses grupos e moradores da cidade que defendiam as barricadas ainda erguidas.

Leiva informou que há pelo menos dois mortos, um deles policial, mas as identidades ainda não foram confirmadas. “As ações humanitárias estão limitadas, devido à violência existente”, explicou o ativista de direitos humanos. “Às sete da noite (hora local) forças paramilitares atacaram (o bairro indígena de) Monimbó utilizando armamento de alto calibre, segundo denúncias de cidadãos”, afirmou Leiva.

Edwin Román é o pároco do bairro de San Miguel na cidade. O sacerdote apoiou as vítimas da violência desde o início da crise, abrindo as portas da paróquia para refugiar jovens e atender feridos. “Foi uma provocação total [o ato de Ortega], porque sabia que Masaya não queria recebê-lo. Como vão comemorar [uma atividade partidária] com a quantidade de mortos que houve? A cidade, além de atacada, está atemorizada”, afirma. O pároco garante que a tensão continuava nas ruas durante a noite de sexta-feira e que a polícia e os grupos armados, que agem com impunidade, mantêm sua presença em várias regiões da cidade.

Além de Masaya o ataque à UNAN despertou os alertas no país, devido à importância dessa universidade, a maior da Nicarágua. A Igreja exigiu novamente o cessar da repressão. “Rogo ao Governo da Nicáragua que pare com os ataques contra estudantes da UNAN, use a razão e encontre uma solução não violenta”, pediu Báez. Um apelo semelhante fez Luis Almagro, secretário geral da Organização de Estados Americanos (OEA) enquanto ocorria em Washington uma sessão do Conselho Permanente para discutir a difícil crise vivida pela Nicarágua há 87 dias e que deixou um saldo de mais de 300 mortos. “Solicitamos que os ataques à UNAN cessem e que a vida dos estudantes seja protegida. É inadmissível o uso da força contra a universidade. Qualquer desocupação da universidade deve ser negociada”, disse Almagro. O político uruguaio, além disso, criticou com dureza o regime e disse que “a Nicarágua é vítima da repressão e da violência”. Almagro advertiu que “existe uma responsabilidade clara do Estado pela repressão e pela morte causada por policiais e paramilitares partidários disso. O Estado serve para proteger direitos de todos e não para arrasá-los”, afirmou.

Estudantes entrincheirados na UNAN disseram que foram atacados por “paramilitares” fortemente armados. Eles tinham advertido em dias anteriores que temiam um ataque das hostes de Ortega e pediam apoio para evitar uma matança. Fontes da opositora Aliança Cívica —que reúne empresários, produtores, acadêmicos e representantes da sociedade civil— explicaram que tinham iniciado um processo de negociação para que os jovens saíssem da universidade com garantias, mas o ataque de sexta-feira demonstra que Ortega está disposto a usar a força para retirar barricadas e bloqueios em toda Nicarágua. Essas barricadas —e o entrincheiramento nas universidades por parte dos estudantes— foram a principal forma de protesto dos nicaraguenses, que há quase três meses exigem a saída do poder de Ortega.

Representantes da Aliança que negociam uma saída para a crise denunciaram na sexta-feira uma série de perseguições. A líder sindicalista Sandra Ramos disse que atiraram em sua casa, enquanto José Adán Aguerri, presidente do Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP), qualificou de ilegal a prisão de Medardo Mairena, líder do movimento camponês da Nicarágua e membro da Aliança, que foi acusado pelo Governo de organizar o assassinato, na quinta-feira, de quatro policiais em Morrito, povoado localizado a 230 quilômetros ao sul de Manágua. Mairena foi preso no Aeroporto Internacional de Manágua quando pretendia tomar um voo para Los Angeles, onde participaria de uma reunião de solidariedade aos camponeses nicaraguenses, segundo explicou ao EL PAÍS seu irmão Alfredo Mairena.

Aguerri garantiu que os membros da Aliança estão sob “ameaça”, mas manterão sua posição de encontrar uma saída negociada para a crise. Até alguns meses era impensável a imagem de Aguerri nos arredores das celas da Diretoria de Auxílio Judicial de Manágua, conhecidas popularmente como El Chipote [algo como a pancada, em tradução livre] e denunciadas como centro de torturas. O empresário se postou junto a outros membros da Aliança para exigir informações sobre o camponês. Ao seu lado se reuniam dezenas de mães que há semanas passam os dias nesse lugar à espera de respostas sobre o paradeiro de seus filhos, jovens detidos ilegalmente nas emboscadas que grupos armados realizam em Manágua e outras cidades do país, segundo afirmaram organizações de direitos humanos. Foram esses grupos clandestinos que impuseram um toque de recolher de fato na capital da Nicarágua. “Não vamos aceitar a chantagem de Ortega”, disse Azahalea Solís, representante da sociedade civil na Aliança. “Esta é uma prisão ilegal, criminosa, um abuso enorme deste regime, criminalização absoluta do direito básico de presunção de inocência”, adicionou a também especialista em assuntos constitucionais.

Enquanto a violência de Estado atacava o protesto pacífico dos estudantes da UNAN, em Masaya Ortega visitava o quartel policial para felicitar os oficiais por seu trabalho. “Convido todos os nicaraguenses e aqueles que estão cheios de violência a unirmos todas as famílias nicaraguenses para lhes dar a paz de que a Nicarágua necessita”, disse o presidente em um discurso cheio de cinismo. Ao mesmo tempo em que Ortega avançava sob um forte aparato de segurança, os moradores de Masaya se fecharam em uma demonstração de rejeição ao homem que ordenou o ataque contínuo à cidade. “Toda vez que Ortega saiu para falar de paz, o exato oposto aconteceu”, afirmou José Adán Aguerri, o líder do sindicato patronal, que esperava em El Chipote notícias do camponês Mairena. Ao seu lado estavam dezenas de mães que aguardavam notícias de seus filhos. Todas levavam fotos desses jovens desaparecidos.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_