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O último caderno de Saramago

A viúva do escritor português, Pilar del Río, encontra textos inéditos redigidos no ano em que ele recebeu o Nobel

O escritor José Saramago, em fevereiro de 1998, em Barcelona.
O escritor José Saramago, em fevereiro de 1998, em Barcelona.Consuelo Bautista (EL PAÍS)

O ano de 1998 começou em Lanzarote com uma tempestade noturna que arrancou as duas oliveiras que José Saramago tinha em sua casinha branca. O escritor terminou dezembro reclinado numa filial da loja de departamentos El Corte Inglés, em Madri, procurando um par de meias. A casual descoberta do sexto caderno de Lanzarote, com textos sobre sua atividade cultural e social, permitirá recompor a vida do autor português no ano em que recebeu o Nobel, duas décadas atrás.

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Também era de noite quando sua viúva e tradutora, Pilar Del Río, vasculhava nesta primavera boreal os computadores de Saramago, conservados em sua casa de Lanzarote. A diretora da Fundação que leva seu nome reunia, ao lado do poeta e ensaísta Fernando Gómez Aguilera, conferências dispersas do prêmio Nobel para publicá-las neste aniversário. “Essa foi a origem da descoberta do sexto caderno de José”, explica Pilar. “No processo de pesquisa, rastreamos outra vez os computadores. Já bem de noite e muito cansada, cliquei na pasta que dizia ‘Cadernos’. Não a havia aberto em 20 anos, como não havia aberto a pasta de ‘Todos os Nomes’, pois eram pastas de livros terminados. Afinal, para que entrar e remover memórias e recordações? Mas, nesse afã de busca, cliquei em ‘Cadernos’ e ali estavam todos os publicados, do um ao quinto, mas debaixo havia um sexto. Eu não podia acreditar. Abri e o arquivo estava cheio de textos. Naquela hora da noite, me pareceu bruxaria.”

O sexto caderno de Saramago terá lançamento mundial em 8 de outubro, por ocasião do Primeiro Congresso Internacional sobre o escritor, em Coimbra. No mesmo dia, a editora espanhola Alfaguara e a portuguesa Porto publicarão outra obra com o título O Último Caderno de Lanzarote.

O mistério ou a bruxaria do sexto caderno não é tanto em relação aos escritos do próprio autor. Pois, no epílogo do quinto caderno da edição espanhola, em 1997, já se anunciava um sexto; e, em 2001, Saramago insistia de novo. “Atribuo o esquecimento ao terremoto que significou a entrega do Nobel”, explica sua viúva. “Atribuo aos acasos da vida, não às leis do marketing.” E, nesse capítulo de coincidências, vem também o fato de que este 20.o aniversário do Nobel de Saramago seja comemorado em um ano insólito, sem Nobel de Literatura.

Saramago (esquerda) recebe o Nobel de Literatura das mãos do rei Carlos Gustavo da Suécia, em dezembro de 1998.
Saramago (esquerda) recebe o Nobel de Literatura das mãos do rei Carlos Gustavo da Suécia, em dezembro de 1998.JAN COLLSIOO (EL PAÍS)

Por vezes, o diário só enuncia um tema que passa pela cabeça do autor. Outras datas recordam encontros com colegas e compromissos culturais. Mas há dias em que Saramago não tem freio, geralmente em relação a leitores e políticos, e é então quando sai a autêntica personalidade do autor de O Ano da Morte de Ricardo Reis (Companhia das Letras, 1988). “É um diário muito completo e muito atual”, explica Pilar, “com suas inquietudes sobre os problemas da época, que continuam sendo hoje de máxima atualidade, como a imigração e a União Europeia.”

O Último Caderno de Lanzarote é um genuíno Saramago, com sua preocupação com a persiana mal fechada e com seus demônios: o FMI, os Estados Unidos da América do Norte (EUAN, como ele diz) e o então primeiro-ministro português, Aníbal Cavaco Silva, que fez tudo o que pôde para ser odiado em seu próprio país e que o motivou a se refugiar em Lanzarote.

Nesse ano extraordinário de 1998, há dias para recordar os cainitas que se negam a colocar seu nome em uma escola e para renegar os patriotas que se calam quando a OTAN ocupa território nacional, mas que se sublevam pelo fato de que a Espanha tenha dado a Portugal uma placa de Filipe II —rei de Portugal em 1580— por ocasião da Exposição Universal.

Saramago se indigna com o FMI porque mete o nariz nas instituições portuguesas. E também com os rumos da União Europeia: “A mesma Europa que gastou séculos e séculos para conseguir formar cidadãos só precisou de 20 anos para transformá-los em clientes”, escreve. O autor de Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras, 1995) vê a globalização se aproximando (estamos em 1998): “Seja mundial ou europeia, é um totalitarismo.”

O Nobel perde sua aspereza quando se corresponde com seus leitores e sua legião de seguidores, alguns —algumas— absolutamente rendidos aos seus pés. “A única ideia original que saiu desses cadernos”, recorda, “é pedir que a obra completa de um escritor inclua um volume com as cartas dos leitores. É um inesgotável campo de trabalho.” E também uma prova da riqueza criativa das pessoas, conforme algumas cartas incluídas em O Último Caderno.

Nessa montanha-russa que são sempre alguns diários, estes de 1998 alcançam o cume com o discurso do Nobel e descem a este mundo terrenal onde a sua companheira te coloca no seu lugar, caso a vaidade tenha subido à sua cabeça, e exige, antes de comparecer a outro prêmio, que você vá comprar meias, já que bem precisa delas. E é assim, ajoelhado, escolhendo entre o que você não sabe, que alguém reconhece um autêntico prêmio Nobel em posição “tão pouco digna”.

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