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Quando Nasi pôs ordem no caos

Documentário 'Você não sabe quem eu sou' retrata a trajetória do vocalista do grupo Ira! Dos sucessos da banda à briga pública que chegou à Justiça, o mergulho na espiritualidade e a reconciliação do grupo

Carla Jiménez
Nasi, vocalista do Ira!
Nasi, vocalista do Ira!M.Rossi

Quem viveu a adolescência nos anos 80 no Brasil tem tatuado na memória as principais bandas de rock nacional. Se for de São Paulo, é Ira! na cabeça. A banda formada por Marcos Rodolfo Valadão, o Nasi, e o guitarrista Edgard Scandurra, marcou época quando o rock brasileiro vivia um apogeu, junto com a redemocratização que se seguiu à ditadura militar. Lá fora, o punk rock quebrava o padrão, e contagiava os músicos brasileiros em formação. O Brasil era, então, uma página em branco e o rock estava ali para trazer a transgressão que os novos tempos ansiavam. Foi justamente em 1985, fim da ditadura, que o Ira! lançou seu primeiro disco, Mudança de Comportamento, com sucessos que estouraram no país. Depois, foi um atrás do outro. “O Ira! é a banda mais importante da minha formação”, diz o ator e diretor Selton Mello, um dos maiores fãs do grupo. “Se eu tivesse uma banda, eu imitaria o Nasi”, completa Mello, num depoimento entusiasmado no documentário Você não sabe quem eu sou, produzido pela Kurundu Filmes, que conta a história do vocalista do Ira!.

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Nasi seguiu a sina de todas as bandas, onde quem empresta a voz ao grupo acaba personificando o todo. Além de Scandurra, o grupo era formado por André Young e Ricardo Gaspa. Mas era o sujeito que dava a voz à trupe quem inspirava a geração de Selton Mello. Cara invocada, voz grossa e com os trejeitos talhados na cena underground paulistana. Nasi tinha então pouco mais de 20 anos e já era todo um personagem, intenso, inquieto e muito bom no que se propunha: cantar bem e fazer sucesso, procurando não se vender aos padrões da indústria musical dirigida pelas gravadoras que buscavam pasteurizar sucessos. “O Ira! era uma banda ambiciosa desde o começo”, conta ele em conversa com o EL PAÍS. Mas era ciosa de suas próprias regras, de não trair o espírito punk rebelde que o influenciou. Disseram 'não' a muitos convites que pudessem comprometer o compromisso com a própria liberdade. Num tempo em que as gravadoras eram muito mais poderosas que hoje, gravaram 14 discos e venderam mais de 3 milhões de cópias, CDs e DVDs em mais de duas décadas de carreira. E rodaram o Brasil inteiro.

Só que assim como a vida, a trajetória de Nasi, e do Ira! não foi linear, e o Brasil conheceu o lado B do vocalista e do grupo em 2007, quando Nasi, Edgard e o empresário da banda, Airton Rodolfo Junior (irmão de Nasi), protagonizaram uma briga pública, em que lavaram roupa suja pela imprensa, e trocaram processos judiciais para se separar. Tudo começou enquanto negociavam se a banda deveria dar um tempo, pois os anos de convivência na estrada desgastaram a relação entre o grupo. Com a sensibilidade a flor da pele e fofocas na imprensa, uma bomba relógio começou a se formar. E explodiu depois de uma briga em que Nasi agrediu seu irmão. Boca solta, sangue calabrês, o cantor já tinha uma fama prévia de esquentado, que reforçou o estereótipo naquele momento. De repente estavam todos contra o Nasi. Inclusive seu pai. Era o vilão para seus ex-companheiros e para a imprensa, por ter perdido o controle quando discutiu com o irmão empresário e o agrediu. O Ira! viveu toda sorte de conflitos mercuriais noticiados pela imprensa.

Um baque para a legião de fãs que se formou em mais de duas décadas de estrada da banda. “Chorei muito. A primeira vez que eu ouvi a notícia que a banda tinha acabado, foi um baque”, conta, no documentário, um fã que acompanhava a banda desde criança. Aos olhos de hoje, a percepção daqueles tempos de guerra é mais clara. Muita testosterona, egos masculinos, e má orientação de advogados para lidar com um término que poderia ter sido mais ameno.

Tempos horríveis, em que o vocalista viveu um inferno particular e vivenciou, intensamente, a ira em seu estado bruto. Intensidade é aquela qualidade que em doses exageradas vira veneno. E Nasi é assim, desde o princípio, vivendo o auge pela interpretação visceral das músicas que se tornaram clássicas, como “Longe de Tudo”, “Envelheço na cidade” ou “Dias de luta”. Mas já havia experimentado a intensidade na sombra, em outra passagem pelo inferno quando se viciou em cocaína nos anos 90. Foi o tempo em que “casei com as drogas”, como ele descreveu em sua biografia A Ira de Nasi, de 2012, escrito pelos jornalistas Mauro Betting e Alexandre Petillo.

Petillo é um dos nomes que assinam o roteiro do documentário “Você não sabe quem eu sou”, junto com Rogério Corrêa e Rodrigo Grilo. Curiosamente, tanto o livro como o filme nasceram com um propósito, que mudou no meio do caminho, seguindo o ritmo das emoções do personagem principal. “Na verdade, quando fiz a biografia era a história do Ira! inicialmente. Mas quando concluí o livro, a banda acabou, e o livro ficou na gaveta”, diz o diretor do filme. O foco mudou para Nasi, e o livro foi lançado quando os ânimos estavam mais calmos. Àquela altura o documentário já começava a ser filmado também, mas levou sete anos para o projeto ser concluído. Isso porque o plano era focar nesse momento individual de Nasi, em sua carreira solo cantando blues, e as novas experimentações artísticas incluindo um programa no Canal Brasil. Mas em 2013, Nasi decide se pacificar com seu passado, e começa uma jornada pela reconciliação com a banda, com seu irmão e seu pai. Assim, a conclusão do documentário foi sendo adiada para acompanhar a reconciliação, em especial com Edgard Scandurra, o irmão de alma de Nasi, e fundamento do Ira!, parte mais zen e discreta, cuja figura se contrapõe ao cantor bad boy. Foram cinco anos que interromperam uma relação de quase três décadas. Mas as feridas já estavam cicatrizando, e eles baixaram a guarda, com a pressão espontânea dos fãs que os acompanhavam em suas respectivas carreiras solo.

É a essência dessa história que Você não sabe quem eu sou vem contar. Petillo, Corrêa e Grilo ouviram fãs, amigos, familiares, parceiros profissionais de Nasi. Foram com ele para seu refúgio na praia, e acompanharam uma parte que ganhou relevância fundamental para que ele curasse sua ira pós rompimento com a banda. O cantor buscou refúgio no Ifá, religião de tradição iorubá (africana), que acolheu o cantor rebelde e começou a adoçar os seus sentidos. Passou a frequentar o templo Oduduwa, templo de orixás, em Mongaguá, litoral paulista, guiado pelo pai King, seu agora mentor espiritual. “A vida é mutável, e você tem como mudar a vida”, diz pai King num trecho do filme. E Nasi mudou. E mudou para melhor, para alegria dos fãs, do irmão, do pai que veio a falecer no final do ano passado, e para o rock brasileiro, que hoje tem bem menos exposição que quando o Ira! começou.

Mas isso já é outra história. Até porque, mesmo disputando espaço com os novos ritmos comerciais –  do sertanejo ao eletrônico – a agenda do Ira! está lotada. Desde 17 de maio de 2014, quando o grupo se reconectou oficialmente (com a substituição de Gaspa e André) já somam 230 shows. E Nasi, agora com 56 anos, continua colocando intensidade em tudo que vive. Dá a voz ao Ira!, faz alguns shows solos esporádicos, e está na sétima temporada do programa Nasi Noite Adentro, no Canal Brasil. De seu mergulho na espiritualidade, entrou também na produção de um documentário Exu e a Ordem do Universo, com pesquisas tanto na África como na Espanha, de onde vem pai Caamaño, que ajudou a erguer o templo de Mongaguá. Exu é uma das divindades iorubás que guiam Nasi. É conhecida por promover o caos e depois colocar a ordem a partir desse mesmo caos. Entender essa sutileza é compreender uma parte de Nasi e de sua história com o Ira!. É o que os produtores do documentário sobre ele trazem ao espectador.

O filme será apresentado nesta segunda no festival in-Edit Brasil, no CineSesc, em São Paulo, com duas novas apresentações nos dias 15 e 16. Mas os produtores já foram sondados para distribui-lo tanto no Canal Brasil como em outras plataformas. Sinal de que Nasi continua a despertar paixões. “Pelo tanto de histórias boas que Nasi guarda, ele mereceria um 'Você não sabe quem eu sou, parte 2, uma confusão ainda maior'”, brinca Perillo. 

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