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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Há um caminho à esquerda

Para realizar as reformas exigidas para enfrentar o populismo e o nacionalismo, a socialdemocracia precisa vencer as eleições. Só as urnas podem dar a legitimidade para implantar as mudanças que a Espanha exige

Antonio Caño
EDUARDO ESTRADA
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A queda de Mariano Rajoy, apesar de motivada e obtida em última instância por uma sentença judicial que simboliza com toda a crueza a decomposição do Partido Popular, não se deve exclusivamente a esse episódio; nem sequer é consequência principal da corrupção.

A moção de censura contra Rajoy triunfou, sobretudo, pelo esgotamento de um líder, de um partido e de uma forma de fazer política que correspondem a outra época. Rajoy caiu pela corrupção, sim, mas, mais do que isso, por sua incapacidade de responder a problemas novos – a ânsia de identidade, a desigualdade, a deterioração institucional, o descrédito da democracia liberal – para quem não serve um líder fossilizado, com um partido autoritário e uma política medíocre e displicente que não se conecta com cidadãos insatisfeitos e furiosos em todo o espectro político, social e geracional. Dizendo de outra forma, Rajoy não só foi derrotado pela corrupção – de fato, o mesmo partido corrupto venceu muitas eleições na Espanha nos últimos anos – mas foi arrastado pelo vento áspero que hoje está devastando o establishment em meio mundo.

A expressão máxima do fracasso de Rajoy é a Catalunha. Sem colocar em dúvida que são os líderes e partidos independentistas os culpados pela crise que tanto dano está causando à sociedade catalã, é indubitável a essas alturas que Rajoy foi incapaz de dar a resposta adequada, e que sua reiterada apelação à lei e ao ordenamento constitucional não só foram insuficientes para contrapor o desafio separatista como desvalorizaram a lei e o ordenamento constitucional.

A explosão ultranacionalista e populista na Catalunha, contestada com um tímido mas significativo ressurgimento do nacionalismo espanhol, é a mesma que conhecemos na Hungria, Polônia ou Itália. Também nos Estados Unidos e no Reino Unido, Alemanha e França. Na Espanha, foi levada adiante pelo líder e pelo partido mais exposto, o que estava no Governo —reparemos no fato de que o repúdio a Rajoy é tanto maior em suas próprias fileiras do que nas rivais— mas corremos o risco de que o rastilho de pólvora avance e cause mais danos se não formos capazes de contê-lo a tempo.

A melhor resposta deveria ser articulada pela esquerda socialdemocrata. Em teoria, só a partir desse campo é possível elaborar hoje na Espanha o conjunto de ideias de progresso social, solidariedade, respeito à diversidade e vontade reformista que colocariam um freio ao populismo e ao nacionalismo que aqui, como na Itália, acabariam se impondo se não houver contestação. Infelizmente, nem é seguro nem fácil de acontecer.

Conforme se comportar esse Governo durante a transição está em jogo o futuro do Partido Socialista

A chegada de Pedro Sánchez ao Governo foi recebida pela esquerda, logicamente, com enorme esperança. Quis-se destacar o ar fresco que traz, a esperança que se abre para um novo estilo de fazer política, com mais diálogo, mais atenção aos problemas sociais esquecidos em anos de exclusiva dedicação à recuperação econômica, mais limpeza, melhores formas. A esquerda, como todos, é presa atualmente de um clima emocional que distorce tudo e que aborta precipitadamente qualquer reflexão racional, a ponto de a demanda por eleições poder se tornar uma reivindicação reacionária.

Além disso, é compreensível o voluntarismo da esquerda ao pretender, depois de anos difíceis, agarrar-se a um instrumento tão frágil e contraditório quanto este Governo para sonhar com novos tempos que, na realidade, só podem ser fruto de um trabalho muito mais consciente e acertado.

Há uma oportunidade para a esquerda, é verdade. Mas o Governo que se constituirá nos próximos dias não é essa oportunidade. Para que a centro-esquerda possa dirigir o programa profundo de reformas que se exige a fim de deter o populismo e o nacionalismo é preciso, em primeiro lugar, ganhar as eleições para chegar ao Governo. Tudo o mais —no momento— pode ser inevitável para reduzir uma crise conjuntural, necessária para preencher um vazio institucional, mas em todo caso circunstancial e transitório. Nenhum Governo sem o respaldo das urnas tem a legitimidade necessária para conduzir a regeneração moral, a modernização econômica e as mudanças políticas exigidas pela Espanha.

O Governo que Pedro Sánchez vai constituir só pode ser, portanto, breve e de transição. E conforme se comportar esse Governo durante a transição está em jogo o futuro do Partido Socialista. Ainda sem corrupção em suas fileiras —ou, pelo menos, sem o volume demolidor do PP—, o PSOE pode acabar sendo vítima da mesma onda que arrastou Rajoy. E realmente será se sua chegada ao Governo for interpretada como um sucesso de sua política dos últimos anos e não como o que na realidade é: um presente caído do céu.

Se Sánchez se empenhar em governar com quem o levou à presidência, corre o risco de ser confundido e, em última análise, devorado por eles

Sem dúvida que os presentes precisam ser aproveitados, mas, sobretudo, é preciso analisá-los, porque às vezes são envenenados. Este chega a Sánchez não por seus méritos mas porque os nacionalistas —como alguns disseram expressamente no debate desta semana— quiseram castigar Rajoy e o Governo da Espanha e porque o Podemos observa uma oportunidade de marcar de perto o PSOE e superar sua própria crise existencial, agudizada nas últimas semanas.

Um claro indicador de que a chegada ao poder de Sánchez não é a prova da fortaleza de sua política é que, assim como Rajoy, não quis submetê-la ao escrutínio das urnas. É muito sintomático que nenhum dos três partidos tradicionais que restam no Parlamento —PSOE, PP e PNV— queiram convocar eleições. Mais do que sintomático, é prova de que se sentem inseguros diante das turbulências sofridas pelo sistema político, que temem ser arrasados por elas. Sánchez deveria ter consciência de que proteger-se sem mais durante alguns meses à sombra de La Moncloa não vai evitar sorte semelhante à de seu antecessor no cargo. Entre outras coisas porque seu Governo estará apoiado pelas forças que, no longo prazo, querem acabar com ele.

Se existe agora, no entanto, a oportunidade de assentar as bases para uma alternativa de centro-esquerda que se distancie claramente das opções populistas e que fale com sinceridade aos cidadãos sobre os sacrifícios necessários hoje para concorrer na globalização, que se encaminhe para o Estado de bem-estar, que modernize a economia, que revitalize a pesquisa e a ciência, que proponha leis para limpar a política, para reparar o sistema eleitoral, que aborde um novo modelo territorial e dê as costas ao nacionalismo excludente, que tente recuperar o orgulho da população em um projeto coletivo, mais justo, mais igualitário. Existe, sem dúvida, um espaço no centro-esquerda. Não é o que ocupa hoje este Governo. E não resta muito tempo para encontrá-lo. Se Sánchez se empenhar em governar com quem o levou à presidência, corre o risco de ser confundido e, em última análise, devorado por eles. Se convoca eleições e aproveita este tempo para expor o perfil de um centro-esquerda reformista e moderno, justamente em contraste com quem o ridicularizou esta semana, ainda pode haver uma oportunidade.

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