_
_
_
_
_

O segredo familiar que consumiu Yves Saint Laurent

Dez anos depois da morte do estilista, sua sobrinha publica um livro onde revela o estupro da mãe dele

Mais informações
Mulheres embasbacadas com Cate Blanchett, o novo gênero favorito da Internet
Duas tops na plenitude: é assim que elas escapam, com 48 e 70 anos, da ditadura da juventude
Amal tem um dos trabalhos mais interessantes do mundo (e o melhor guarda-roupa)

No dia em que Yves Saint Laurent morreu, 1º. de junho de 2008, sua sobrinha, a escritora Marianne Vic, preferiu não ir ao funeral realizado na igreja parisiense de Saint-Roch. “Estava triste demais. Perdia uma figura paterna, por estranho que pareça. Apesar do seu próprio sofrimento, ele sempre se ocupou de mim”, conta sobre seu tio, que também era seu padrinho. Nesta sexta-feira ela voltou a esse local para homenageá-lo, dez anos depois de sua morte, e leu em sua memória algumas linhas que originalmente lhe foram dedicadas por Marguerite Duras. Foi uma forma de fechar um círculo. Da mesma vontade surge seu último livro, Rien de Ce Qui Est Humain N’Est Honteux (“nada de humano é vergonhoso”), recentemente publicado na França, em que Vic revela um segredo familiar que acredita ter devorado Saint Laurent: um estupro cometido por seu padrasto contra sua mãe.

Neste livro de prosa cortante, Vic se esforça em desmontar a mitologia que sempre cercou o estilista, meticulosamente concebida por Pierre Bergé, seu sócio e companheiro sentimental durante 50 anos. A figura chave nessa imagem familiar é da matriarca Lucienne, que também foi filha de outro estupro, do qual sua mãe foi vítima pouco depois de se casar com um banqueiro na Argélia colonial. Para evitar que a acelerada ascensão social da família fosse interrompida, Lucienne foi entregue a uma ama-de-leite ao nascer e passou os cinco primeiros anos de sua vida em um orfanato.

Saint Laurent morreu sem saber nada disso. “Nem cogitei lhe contar”, diz Vic, a quem sua avó confiou o segredo em 2002, poucos dias depois de o estilista anunciar sua aposentadoria do mundo da moda. “Eu estava muito impactada, a tal ponto que tinha deixado de ver minha avó. Guardava-lhe rancor. Por que tinha me escolhido, e não os seus três filhos, que ainda estavam vivos?”

A autora terminou entendendo que os considerava “frágeis demais para ouvir” a revelação. E que os tabus familiares costumam se romper saltando uma geração. Mesmo assim, está convencida de que seu tio sabia que algo não batia no relato oficial. “Um segredo de família sempre é um veneno. Seja qual for, devora você por dentro. Uma criança sempre consegue perceber essas coisas”, argumenta.

O costureiro, em sua oficina.
O costureiro, em sua oficina.GETTY

Vic também se aprofunda na ascendência espanhola de Saint Laurent, bisneto de imigrantes que se instalaram em Oran (Argélia) no final do século XIX, fugindo da pobreza. Sua avó adotou o sobrenome de ressonância germânica de seu marido, Muller, para eliminar qualquer rastro dessas origens. “Sempre se falou muito da genealogia do pai de Saint Laurent, mais prestigiosa, onde havia alguns membros do entorno de Napoleão Bonaparte. Por outro lado, mencionava-se menos que sua mãe descendia de caramujos espanhóis – como eram chamados por causa do fardo que levavam nas costas com todos os seus pertences –, que se instalaram na Argélia e conseguiram crescer”, relata Vic.

O jovem Saint Laurent sentiu vergonha da mãe de origens humildes, apesar da insistente lenda segundo a qual foi a incomensurável elegância dessa mulher que inspirou sua carreira meteórica na moda. “Era uma mulher com um senso estético muito desenvolvido, que causava sensação em Oran com modelos confeccionados com padrões vindos de Paris. Mas quando entrou para trabalhar na Dior, meu tio percebeu o abismo colossal que separava a elegância de sua mãe e a das parisienses…”, afirma a sobrinha. Com o tempo, essa vergonha terminou por desaparecer. Lá estava Lucienne, radiante de felicidade, sentada na primeira fila do desfile de despedida que Saint Laurent organizou em 2002, com Catherine Deneuve e Laetitia Casta como convidadas. Entretanto, durante esse longo processo, Lucienne também tinha mudado.

“Apagou tudo o que não gostava das suas origens, seu sotaque, sua maneira de falar e seus costumes”, afirma Vic. “Minha avó terminou se tornando uma mulher vestida de alta costura e calçada com salto alto, que usava meias escuras até no verão. Mas sempre é difícil fazer desaparecer totalmente o que lhe constitui…” Vic levou 16 anos para romper o silêncio. Esperou que morressem seu tio, sua avó e sua mãe, Brigitte, com quem Saint Laurent teve uma relação complicada, e só então se sentiu capaz de contar a história. “Não queria transmitir esta herança a meus filhos”, justifica-se. Em 2016, informou sobre o projeto literário a Bergé, o guardião do templo. Garante que teve seu aval. E também que este acrescentou a seguinte frase: “No fundo, você é a única da família que encontrou uma saída”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_