“Não vamos sair enquanto um desconto justo não estiver em Diário Oficial”
Parados na rodovia Régis Bittencourt, perto de São Paulo, caminhoneiros falam sobre suas reivindicações
"Difícil" e "complicado" são as palavras mais repetidas por caminhoneiros em greve que estão parados na rodovia Régis Bittencourt, a cerca de 30 quilômetros de São Paulo. Ademir Wagenknecht é um deles. Com 43 anos, há 25 trabalha como caminhoneiro autônomo pelas estradas do Brasil levando todo tipo de carga, mas principalmente frutas, verduras e legumes. Ele lista o que chama de riscos de estrada: "A qualquer momento podemos ser assaltados, não temos nenhuma segurança. E falta estrutura para nos atender. Muitas vezes não temos como cumprir a norma de descanso, já que não temos pátio para descansar seguro e a maioria dos postos só nos deixam parar o caminhão se somos cliente ou se abastecemos. O Governo deveria providenciar pátios públicos ou determinar que os postos nos deixem estacionar", conta ele, que diz trabalhar "às vezes 10 horas, às vezes 20 horas, às vezes 24 horas". Todos os dias. Mas na manhã desta sexta-feira, seu enorme caminhão, carregado de cebolas que vai do interior de São Paulo até Joinville (SC), permanecia estacionado em uma pista da estrada junto a vários outros.
A greve convocada por caminhoneiros teve como estopim os sucessivos aumentos do preço do diesel — só no mês de maio foram 10 altas e cinco quedas em seu valor. As tarifas do frete estão congeladas há anos e, segundo reclamam, o abastecimento de seus veículos acaba consumindo uns 50 ou 60% do que recebem para fazer um serviço. Mas não é só pelo valor diesel que estão ali. Aglomerados na Régis Bittencourt, esses caminhoneiros — todos homens — são trabalhadores simples, de origem humilde, e enfrentam uma série de obstáculos para exercer a profissão. Ademir continua listando alguns deles: "O pedágio está caro demais, com valores abusivos, e não vejo o retorno", argumenta. Outra problema de sua categoria: hoje os caminhoneiros autônomos, como ele, estão endividados. "É prestação para pagar, é o pneu que está um absurdo de caro e gasta fácil... O meu estourou e, chegando em casa, vou ter que pagar 1.800 reais por um novo. É o valor do frete que estou carregando". Chegando em casa, também ficará o mais perto possível da esposa e seus três filhos. O tempo é escasso. "Passo três ou quatro dias por mês com eles. E quando saio, não sei se volto. Já fui assaltado e fiquei 12 horas amarrado no porta-malas de um carro. É bem complicado", conta ele, que se tornou caminhoneiro seguindo os passos do pai, que sentia orgulho da profissão e lhe passou o bastão. "Até tenho vontade de parar, mas não sei fazer outra coisa. Não estudei para isso".
Ademir e outras dezenas de caminhoneiros se encontram na saída do Rodoanel e na entrada da rodovia Régis Bittencourt. Mas a principal aglomeração de grevistas está mais adiante, exatamente no quilômetro 281 da mesma estrada, perto de um posto de abastecimento. Alberto Mil está lá. Apesar de estar há 45 anos na estrada, diz que também não tem condições de parar de trabalhar. Com 63 anos e autônomo, este gaúcho de Caxias do Sul diz que, "caso a greve não melhore nada", vai "largar o caminhão e pegar a inchada". "Se você tem um filho e quer dar uma educação decente, você tem que pagar. Com a mensalidade de 4.000 reais que pago de faculdade para minha filha, tenho que continuar", diz ele, que transporta produtos de sua região, principalmente arroz, para todo o país. Já chegou a ficar 60 dias fora de casa. "É duro". Seus olhos começam a se encher de lágrimas. "Você sabe quando sai, mas quando chega, nunca".
"Eu em casa sou turista, vou de vez enquanto. Mas quando estou em São Paulo, estou sempre com meus três filhos", diz entre risadas Marcio de Faria, 46 anos. Apesar das dificuldades, diz que o único motivo pelo qual continua trabalhando como caminhoneiro, sua ocupação nos últimos 15 anos, é porque gosta. "O prazer para mim é estar todos os dias em lugares diferentes. É estar na estrada, é dirigir e conhecer gente nova e com outras ideias", conta. Mas se antes gastava 350 reais para encher o tanque, hoje gasta 550. Também paga uma prestação de 2.600 reais de seu caminhão.
Enquanto conversa com o EL PAÍS, Marcio auxilia os motoristas de carros que passam pelo local. Apesar de filas imensas de caminhões ocupando a rodovia, os grevistas mantêm uma pista liberada para automóveis, motociclistas, ambulâncias e caminhões com determinadas cargas — remédios, animais e alimentos que estragam. Apesar do trânsito, a maioria dos passam por ali, inclusive policiais e outros agentes públicos, buzinam e aplaudem, em sinal de apoio ao movimento. Também são muitos os que deixam doações de comida e água, o que permite inclusive que um churrasco seja improvisado na estrada. Os caminhoneiros que moram nas redondezas até voltam para suas casas no fim do dia. Já os demais dormem em seus veículos e pagam para utilizar o banheiro e o chuveiro de moradores de comunidades locais — alguns pedem para que sejam instalados banheiros químicos no local. Estão cansados e muitos com medo de terem suas cargas roubadas em momentos de desatenção. Mas insistem em suas reivindicações. "Não vamos sair enquanto um desconto justo não estiver em Diário Oficial. Estão convocando o Exército, mas não estamos fazendo nada de errado e nem impedindo ninguém de passar. Se vierem, não vamos reagir", garante Marcio.
Organização da greve
Renato Machado, de 32 anos, também cresceu na boleia de um caminhão, acompanhando seu pai. Ele conta que os grevistas não estão ali "para ganhar um veículo novo, mas sim para dar um pouquinho de dignidade para a família". "Tem muita gente aqui sem um convênio de saúde, um seguro. Nós queremos levar nossos filhos para a faculdade, queremos dar uma vida melhor para eles. Porque, sinceramente, não quero que meu filho seja caminhoneiro", diz.
Hoje sua situação está mais tranquila. Ao contrário de Ademir, Alberto e Marcio, todos eles autônomos, Renato hoje trabalha em uma empresa que faz serviços de terraplanagem em São Paulo. Recebe salário, cumpre carga horária e todos os dias está em casa com sua família. Ele conta que a companhia para a qual trabalha não só apoia como também "estimula" a paralisação, já que também se interessa por pagar menos pelo abastecimento de seus 10 veículos, todos estacionados na garagem desde segunda-feira. No entanto, Renato critica os grandes empresários que, segundo suas palavras, estão por trás das organizações que estão negociando com o Governo Temer. Nesta quinta-feira, um acordo foi assinado entre organizações e o Governo Federal prevendo um congelamento dos preços do diesel. O combinado fracassou e as paralisações seguiram nesta sexta, agravando o desabastecimento nas cidades. Isso porque, garante Renato, as entidades que negociaram não representam sua categoria. "Elas são fascistas, estão a mando de empresas que têm bastante caminhão, a mando de empresários com frotas de 100 ou 200 veículos. Não nos representam. Aqui ninguém nos representa, é o povo que está aqui", diz.
A grande maioria dos caminhoneiros com os quais o EL PAÍS conversou são autônomos, mas alguns trabalham em empresas de pequeno e médio porte, como Renato. Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) diz que 53% de todos os caminhoneiros do Brasil trabalham para alguma empresa de frete e 46% são autônomos. Devido à grande quantidade de empresas no negócio, o ministro da Segurança Pública Raul Jungmann levantou a possibilidade de que a greve na verdade seja um locaute; isto é, um movimento de paralisação promovido pelos próprios empresários para pressionar o Governo Temer a abaixar os preços ou com alguma motivação política por trás — militantes e grupos de esquerda críticos à paralisação ventilaram a possibilidade de que um golpe militar estava sendo tramado, usando como referência as intervenções no Brasil (1964) e Chile (1973), precedidas por movimentos de caminhoneiros similares.
Os grevistas na Régis Bittencourt rejeitam essa versão. Eles asseguram ter se organizado de forma espontânea a partir de segunda-feira e que não há lideranças. "Todos somos caminhoneiros, todos somos líderes", repetiam. Toda a comunicação é feita via WhatsApp, conta William Batista, 32 anos. Ele, que também tem caminhão próprio e trabalha com terraplanagem, explica que grande parte dos caminhoneiros ali concentrados vivem e atuam na região de Grande São Paulo, próximo a Embu das Artes. Ele reafirma a versão de que as entidades que negociam com o Governo não representam a categoria, mas sim as que estão em Brasília e que não foram aceitas nas conversas com o Governo. Ele diz não se lembrar de nomes e nem de qual organização pertencem. "Queremos que cortem impostos do combustível e que aumentem seu preço só uma vez por mês. Se antes pagávamos o diesel com 30 ou 40% do valor do frete, hoje está beirando 60%. E aí tem manutenção, troca de pneu, pedágio... Não sobra nada para o dono do caminhão".
Pedidos por intervenção militar
Com toda essa demonstração de força em pleno ano eleitoral, uma questão passou a pairar: qual candidato os grevistas apoiam e qual movimento político — direita ou esquerda — pertencem. Muitos deles aproveitaram a onda de indignação para expor ideias mais radicais. Imagens de caminhoneiros por todo o país pedindo por intervenção militar se espalharam pelas redes sociais e televisões, além de relatos de apoio ao pré-candidato ultraconservador Jair Bolsonaro.
Na Régis Bittencourt, ainda que a questão política não estivesse sendo debatida abertamente e nem houvesse uma tendência clara, em determinado momento desta sexta começaram a surgir cartazes pedindo por uma intervenção. Ao mesmo tempo, muitos elogiavam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como explicar essa contradição? “O Lula foi o nosso melhor presidente, mas ele se empolgou demais e o que deu para o povo também roubou para ele”, explica Claudomiro de Oliveira barros, 43 anos e caminhoneiro “desde que se entende por gente”. Autônomo, ele diz que o pedido por intervenção havia surgido após o Governo Temer afirmar que poderia usar as Forças Armadas para acabar com a greve. “Eles querem botar o Exército para bater na gente e ir contra a população. Então a gente vai colocar o Exército a favor da gente e favor do povo. Tomam conta de Brasília e acaba com pelo menos metade dos vagabundos do país”, explica. Outros afirmavam que, uma vez que os militares tomassem o poder, novas eleições deveriam ser convocadas imediatamente.
Já o caminhoneiro Júnior conta que, quando o PT estava no governo, chegou a ter quatro veículos e oito empregados. No último ano teve de vender quase todos eles e ficar apenas com um, além de voltar a pegar a estrada. “No tempo do Lula, o óleo não tinha essas elevações tão rápidas. Era uma época muito boa para a gente”, diz. Já Ademir, que levava o carregamento de cebolas para Santa Catarina, prega a união de todos "para colocar alguém que governe por nós" nas eleições de outubro. Por ora, tem muitos questionamentos para a classe política: "Por que o valor do nosso etanol é tão absurdo se a gente produz aqui no Brasil? Se a gente tem refinaria, por que vendemos nosso petróleo e compramos combustível de fora? Não dá para entender". E garante: "Estamos aqui por toda a classe, mas também pelo povo. Todo mundo sabe como ele está passando dificuldade".
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