Terry Gilliam: “Se o humor morrer, será o fim da civilização”
Diretor britânico encerra o Festival de Cannes com 'The Man Who Killed Don Quixote', projeto ao qual dedicou duas décadas de sua vida
A viagem acabou. Terry Gilliam (Minneapolis, 1940) cavalgou contra tempestades e furacões, aviões da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), doenças de seus atores, produtores que fugiram sem colocar o dinheiro, ações judiciais e rumores de acidente vascular cerebral. Mas, finalmente, The Man Who Killed Don Quixote (O Homem que Matou Dom Quixote) encerra neste sábado, dia 19, o Festival de Cannes e o cineasta, que durante estas duas décadas de tentativas frustradas parecia também sofrer da síndrome de Alonso Quijano (enlouquecer na tentativa de adaptar um romance de cavalaria), sorri. Nunca parou de fazê-lo em 20 anos, mas agora sua risada soa mais clara, sem nuances. E seu melhor reflexo é o cartaz com o qual começa a projeção do filme: “E agora, depois de mais de 25 anos fazendo... e desfazendo: um filme de Terry Gilliam”.
Em um encontro com a imprensa espanhola em Cannes, Terry Gilliam sabe que é o rei do momento. Nesta manhã ele conquistou sua segunda vitória judicial contra o produtor português Paulo Branco. Amanhã, ao mesmo tempo em que é projetado no festival, será possível lançar comercialmente seu Quixote na França. Isto, juntamente ao fato de que há dez dias a justiça também rejeitou a ação de Branco para que o filme não fosse apresentado em Cannes, melhorou muito o humor de Gilliam. “Estou bem, realmente, a minha saúde está ótima, relax. Estou muito feliz com o festival, porque apostou forte no filme e o protegeu dos ataques do meu amigo português. Eu ia mostrar o filme de uma forma ou de outra no festival.”
Valeu a pena tamanho esforço, que inclui duas rodagens, uma série de atores contratados e dois protagonistas mortos? “Provavelmente a única coisa boa que acontece comigo é que não tenho memória, esqueço todas as coisas ruins e só me lembro das boas. Por isso continuei a fazer filmes”. Gilliam não se preocupa com as críticas sobre seu sacrossanto esforço. “Não, porque escrevi a maioria”, e solta uma das suas estranhas gargalhadas. Mais seriamente, reflete sobre o perigo de tornar os sonhos realidade, porque às vezes não cumprem as expectativas. “Através desses anos, muitíssima gente fez uma ideia do filme que provavelmente é melhor do que o filme real. Espero surpreender alguns.” E durante esse processo foi aperfeiçoado o roteiro, do que desapareceu, por exemplo, uma viagem no tempo. “Porque era uma ideia muito ruim!” A estrutura se mantém desde que em 1991 Gilliam começou a acalentar a ideia, que conseguiu realizar em outubro de 2000... apenas seis dias de rodagem no deserto das Bardenas Reales [em Navarra, na Espanha]. As inundações, as costas de Jean Rochefort (que então interpretava Dom Quixote) e o ruído do voo dos caças de uma base da OTAN nas proximidades mataram aquela tentativa.
Não, a pergunta não é se eu estava obcecado pelo Quixote, mas por que o Quixote ficou obcecado por mim
Hoje, Adam Driver encarna um personagem que começou com o rosto de Johnny Depp, Toby, um estudante de cinema que, em um momento de idealismo, filmou uma versão do livro de Cervantes e que, anos mais tarde, transformado em um cínico diretor de filmes publicitários, volta à cidadezinha espanhola onde filmou seu filme de iniciação para descobrir que o sapateiro que fez Dom Quixote, Javier (Jonathan Pryce), realmente acredita ser o cavaleiro da triste figura. A partir daí, o filme delira como só uma obra de Gilliam pode fazer, hipnotizado como seu protagonista com essa aventura. “Não, a pergunta não é se eu estava obcecado pelo Quixote, mas por que o Quixote ficou obcecado por mim. Nunca me deixou sozinho, me maltratou durante 25 anos e eu o culpei por todos os meus problemas.” Pelo menos ele terminou o filme, porque outros o deixaram pelo caminho, como Orson Welles. “Fiz isso por Orson”, brinca. “Disse que faria pelo menos uma coisa melhor que Welles e assim foi: terminei o filme!”, e revela um sinal que deixou em homenagem ao diretor do Cidadão Kane. O cineasta britânico (há anos renunciou à nacionalidade norte-americana) não quer lembrar muito o quanto mudou nesses anos. “Acho que meu humor melhorou. Se o humor morrer, será o fim da civilização. A vida se tornou solene. Me incomoda muito que as pessoas levem tudo a sério.”
Através desses anos, muitíssima gente fez uma ideia do filme que provavelmente é melhor do que o filme real. Espero surpreender alguns
Em seu livro Gilliamismos, o cômico afirma: “Se algo é impossível, eu tento”. Em Cannes, reafirma: “Mas não só eu, a humanidade. O Everest não existia até que se considerou impossível escalá-lo. Acredito que os desafios impossíveis são os que fazem avançar o ser humano”. Dito isto, ele afirma que “seria mais responsável investir esforços e dinheiro para cuidar da Terra em vez de fugir dela em viagens espaciais”. Nessas impossibilidades figura adaptar o romance de Miguel de Cervantes. “Como todo mundo, pensava que sabia algo do Quixote. Há 25 anos convenci um produtor a me dar 25 milhões de euros para adaptar As Aventuras do Barão de Munchausen e o Quixote. Foi então que li o livro. Pareceu-me enorme e senti que tinha de traí-lo para ficar com sua essência. Dane-se o livro! Dane-se Cervantes! Mas a segunda parte me parece o primeiro romance moderno da história, principalmente quando o cavaleiro se irrita ao descobrir que estão escrevendo e fazendo ficção com suas aventuras.”
Dito isso, Gilliam desce do Rocinante, mas deixa um novo desafio para a próxima geração: “Talvez seja o momento de ser encarnado por uma mulher, o momento de vermos Dona Quixota”.
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