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Lars von Trier: “Talvez meu público tenha envelhecido para algumas sequências violentas”

Cineasta dinamarquês minimiza as críticas e deserções no seu duro filme ‘A Casa que Jack Construiu’. “Sou um artista e, portanto, um provocador”

Gregorio Belinchón
O cineasta Lars Von Trier depois da apresentação de seu filme ‘A Casa que Jack Construiu’, na terça-feira, em Cannes.
O cineasta Lars Von Trier depois da apresentação de seu filme ‘A Casa que Jack Construiu’, na terça-feira, em Cannes.ANNE-CHRISTINE POUJOULAT (AFP)
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O alcoolismo passou a fatura. Ele mesmo admitiu isso há um mês, numa entrevista publicada no YouTube, onde aparecia com seu aspecto atual, cabelo comprido e barba grisalha. Em pessoa, chama muito mais a atenção o tremor de suas mãos e seus balbucios. Precisa de uma mão para pegar uma garrafinha de água, e da outra para subi-la e descê-la. Por isso, agora destoa o “fuck” que tem tatuado nos nódulos da mão direita. Aos 62 anos recém-completos, o dinamarquês Lars von Trier parece o pai do cineasta que há sete anos foi expulso de Cannes e declarado persona non grata depois da turbulenta entrevista coletiva de Melancolia. Ali disse: “Entendo Hitler. Não se pode dizer que seja um sujeito estupendo... mas me cai bem. Não sou a favor da Segunda Guerra Mundial, e sou a favor dos judeus... Embora não muito, porque Israel costuma nos ferrar bastante”. Ele mesmo, dias depois, afirmou que a maioria não entendeu o tom de suas frases, e que seu pai era judeu. Mas o dano já estava feito. “Em meu país mal que teve repercussão, porque entenderam o contexto.”

Nesta edição do Festival de Cannes, voltou a levantar poeira com seu thriller A Casa que Jack Construiu, protagonizado por um assassino em série e com sequências gore que levaram muita gente a sair da sessão de gala da segunda-feira – cada veículo menciona uma cifra distinta, dos 2.300 espectadores que cabem no teatro Lumière. “Sou um artista e, portanto, um provocador”, afirma a um grupo de jornalistas europeus. “Eu me preocuparia mais se ninguém se mexesse. Mas o fato é que, como são poltronas dobráveis, cada vez que alguém se levantava se ouvia um ‘bum’, e houve um momento que parecia um furacão”. Não lhe chamou a atenção? “Acho que há muito mais violência em outros filmes e no mundo atual. Talvez meu público tenha envelhecido e esteja mais fraco para algumas sequências.”

No filme, Matt Dillon, que encarna o serial killer, solta um “Por que a culpa é sempre dos homens?” enquanto dialoga com alguém que o espectador suspeita ser o diabo. “Sim, ele também diz que as mulheres são estúpidas. Mas é que na época em que a ação transcorre, há décadas, pensava-se assim. O mesmo se opina na história dos policiais. Então sou um misógino? Olha, meus filmes sempre contaram, até agora, com protagonistas femininas. Minha mãe era uma feminista radical... e talvez eu tenha me vingado dela na tela desse jeito”. O comentário é salientado com um sorriso, para deixar claro que o velho Von Trier, o irônico, está de volta. “Escrevi o roteiro há anos. Se o tivesse feito agora, teria pensado duas vezes sobre esse diálogo.” E prossegue com sua explicação: “O protagonista é um psicokiller, então, faça o que fizer, será mau. Surpreende-me como as pessoas e os meios de comunicação se apaixonam por esses personagens. Eu conheço melhor os psicopatas, gente que só sente culpa ao infringir suas próprias regras, e que tende a destruir suas habilidades. Garanto a vocês que o roteiro era mais divertido do que se vê na tela. Suspeito que não acertei na rodagem”.

Mas A Casa que Jack Construiu na verdade fala sobre a obsessão do artista, e sobre o que é arte, e aí Von Trier, o provocador, talvez se autorreflita com óbvias referências, como trechos que aparecem de seus filmes (“Não tínhamos dinheiro para pagar direitos a outros”) e reflexões sobre o arquiteto nazista Albert Speer: “Speer era nazista, mas alguns de seus edifícios e desenhos me parecem fantásticos”. Sente-se perdoado por Cannes? “É que não considero que tenha feito algo de errado. Certamente me expressei pessimamente naquela entrevista coletiva. Como vocês sabem, eu achava que meu pai era judeu, e minha mãe antes de morrer contou que meu pai verdadeiro era alemão e judeu. Então de repente virei alemão e judeu, e na Dinamarca os alemães são satirizados como nazistas... Eu sou todas essas coisas”. Gagueja, e entra direto em outra polêmica. “O chamativo é que os nazistas construíram um sistema muito inteligente, baseado nos discursos e no carisma de Hitler. Acho singular que não se baseassem em nenhuma religião, ao contrário do resto das ditaduras”.

Von Trier – o von foi acrescentado por seus colegas da escola de cinema, por sua soberba – admite estar muito cansado depois da última filmagem. “A arte leva seus criadores ao limite. Posso inclusive apoiar que matar 61 pessoas, como meu protagonista, pode ser entendido por ele como arte, porque quem define o que é arte? Eu não sou capaz”. O cineasta anunciou há anos que se aposentaria: “Não posso. Fazer filmes é a única maneira que conheço de me relaxar. Acabo de sair de uma depressão e do alcoolismo, embora aqui em Cannes larguei por alguns dias meus comprimidos para ansiedade e cometi alguns pecados veniais. Preciso trabalhar. E na Zentropa [sua produtora] tínhamos que ganhar dinheiro. Por isso decidimos deixar de lado a ideia inicial de que fosse uma série de televisão. Bom, também porque eu não sei trabalhar com outros roteiristas e diretores”. Teme que alguém interprete mal a sua pessoa ou a sua obra? “Não”. Mas quando lê as críticas... “Não leio. Mas se as pessoas veem meus filmes com esse conceito de mim, acho que no final acharão que não são a obra de um típico nazista”.

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