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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Iniesta chora como joga e joga como vive

O meia deixa o Barcelona, o time no que começou aos 12 anos, sem ter ganhado a Bola de Ouro, mas como um dos jogadores mais queridos do mundo

Iniesta comemora um gol em 2004.
Iniesta comemora um gol em 2004.FELIX ORDONEZ (REUTERS)

Andrés Iniesta chora como joga, de maneira suave, elegante e harmoniosa,  cadenciada e ao mesmo tempo descontínua, repleta de momentos arrebatadores, como se dançasse um suingue sendo um solista único do solfejo forjado no conservatório de La Masia, celeiro de jogadores do Barcelona. Poucos atletas dominam a relação espaço-tempo como o capitão do Barça, capaz de uivar como Ronaldinho Gáucho e de acompanhar a jogada da maneira que só Xavi sabe fazer. Nem sequer precisou da companhia de Messi para soluçar como uma criança na entrevista coletiva da quarta feira- passada, quando anunciou sua saída do clube em que jogou toda a vida.

Não há pausas mais comoventes que as de Iniesta. São conduções limpas e serenas, como as de um patinador, até que freia para desviar, para driblar, para desequilibrar, e desaparecer confundido com a cal que marca a linha lateral, a grande e a pequena áreas, as margens do gramado, a largura e o comprimento do Camp Nou. Tem uma voz tão trêmula quanto convincente, assim como o seu jogo, comprimido pela tensão emocional e futebolística, para no final extravasar com gols que anunciavam a glória azul-grená ou consumavam o maior dos desejos espanhóis, como o que lhes deu sua primeira Copa do Mundo na África do Sul.

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Os gols de Iniesta marcaram a vida dos culés, da mesma maneira que há jogadores que marcaram o estilo, poucos como Samitier – ídolo dos anos vinte e trinta – Cruyff, Guardiola ou Xavi, ou que fizeram a diferença, nenhum da categoria de Messi e certamente de Kubala. Quando Iniesta anotava os seus, a TV faiscava e o rádio retumbava. Os gols de Iniesta foram, no fim das contas, como a gestação dos filhos mais esperados, concebidos com felicidade, expressão da bondade do capitão do FC Barcelona.

O futebol também pode ser visto com amabilidade através dos olhos envidraçados de Iniesta, sempre próximo, humilde, generoso e comprometido com sua equipe, com seu clube, com sua maneira de ser tão natural e que às vezes parece infantil, como se nunca tivesse deixado de ser o menino que entrou no Barça aos 12 anos. A vida de Iniesta esteve marcada pelo muro de La Masia. Aos 12 ele o saltou desesperado, como quem sobe numa grade, porque sonhava em jogar no Barcelona. E a ponto de fazer 34 dá meia volta para sair pela porta como titular indiscutível do time, figura internacional da seleção espanhola que agora enfrenta a Copa do Mundo da Rússia.

O sentido de honestidade o levou a romper o contrato “vitalício” que tinha firmado há um ano com o Barça. Jogador e clube deram um tempo para se dizer adeus da melhor maneira, para superar a dor, para que cada parte se encha de razões para a melhor das homenagens, que poderia muito bem ser feita no dia do clássico contra o Real Madrid (6 de maio) ou com a última partida da Liga. Autoexigente e generoso, Iniesta não quer enganar o clube nem a si mesmo. Precisa se distanciar, quer pular o muro, mesmo esgotado como se sente, incapaz de completar uma temporada tão boa quanto a que foi concluída na semana passada com o título da Copa do Rei. Não é o momento para euforia nem depressão, e sim para jogadas como a do 0-4 nessa final da Copa ante o Sevilla.

Jogador à moda antiga, Iniesta sempre se expressou unicamente com a bola. Nunca a manchou; respeitou-a, tanto na rua como no campo, sempre branca, nunca dourada como as do prêmio Bola de Ouro. A sua é muito simples, a da vida inteira, aquela que distribui aos que jogam para respeitar o sentido coletivo do futebol e suas leis naturais. Nada tem a ver com a técnica de mercado e o egoísmo, com o bezerro de ouro que tanta aversão desperta nos mercadores da Europa, América, Ásia e África. Iniesta tem amigos nos diversos times do mundo, e também no Real Madrid. Certamente é um dos jogadores mais queridos do planeta, um troféu único e inigualável, que se entrega a cada jornada no gramado e não nos salões da Suíça ou de Paris.

Iniesta chora como joga e joga como vive. Nunca se havia visto na cidade esportiva do Barcelona uma sala tão cheia e emocionada como sinal de gratidão e admiração a um jogador finalmente liberado, consciente de que já não pode subir ao Everest. Muito intuitivo, não quer estirar sua carreira em prejuízo do clube nem manchar um currículo que conta com tantos títulos como os do ausente Messi: 31. Ganhou muitos troféus e, no entanto, sua maior lembrança é o dia em que estreou no Barça. Naquela noite, realizou o desejo que tinha desde que saiu de Fuentealbilla, a minúscula cidade onde nasceu, na região de La Mancha. Agora já é lenda azul-grená, assim como seus amigos Puyol, Xavi e Víctor Valdés, com a diferença de que, transparente como é, ninguém chora, joga nem vive como ele, porque no solfejo de La Masia cada intérprete é único e “irrepetível”. Música, maestro, antes que desapareça a orquestra.

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