O coração brasileiro de Silvia Pérez Cruz
Após anos vindo ao Brasil às escondidas, cantora espanhola se apresentou no Rio e São Paulo. Primeiro como convidada de Jorge Drexler e, depois, por conta própria
A história começa no dia em que este jornalista entra em contato com a gravadora da artista para pedir informação. “A comunicação com Silvia no Brasil não está sendo tão fluida como deveria”, lhe responde a assessora de Madri. Uma vez que a pessoa, mesmo jornalista, tem seu coraçãozinho, decide se esquecer do assunto, que cada um fique com sua consciência.
Em resumo, a pessoa continua sem saber o que Silvia Pérez Cruz acha do Brasil, apesar de poder imaginar. “Aqui, as pessoas são muito agradecidas, muito generosas”, conta a interessada com esse seu jeito de hippie florida e bonita. A pessoa, coisa rara, percebeu tudo desde o primeiro momento: essa jovem tem algo; esse “algo” que, como o carinho verdadeiro, não se compra e não se vende. Um estilo, uma maneira de dizer, e de cantar...
Em suma, após anos vindo ao Brasil às escondidas, Silvia Pérez Cruz saiu de seu esconderijo, no qual se refugiava, para mostrar seu rosto moreno ao público. Primeiro como estrela convidada de Jorge Drexler. Mais tarde, por sua conta e risco, em São Paulo e Rio de Janeiro, com lotação absoluta em ambos os casos. E foi assim que na última quarta-feira, 18 de abril, foi ao Blue Note carioca, clube de jazz onde, às vezes, se escuta jazz, para despedir-se dessa terra que lhe deu tanto.
A coisa começou com a cantora de decote generoso e calças descosturadas nos locais apropriados, desprovida de todo o glamour e de seus sapatos, preparada para aproveitar “sua noite”. “Muitas coisas aconteceram por esses dias”, nos contou, como querendo nos situar. Por exemplo, Pérez Cruz dividiu a mesa e canções com Caetano Veloso, daí sua interpretação de “Tonada de la Luna Llena” que iniciou a noite, dedicada ao icônico cantor e reconhecido antropófago. Silvia sozinha com seu “adorável português” e seu violão, que não é seu, mas emprestado, lançando seu repertório: “Verde”, Hymne á l'amour" (Piaf), “Mañana”... alguns problemas de afinação por motivos alheios à vontade da cantora, ou pelo menos é o que se supõe. E chegam os convidados: Marcelo Caldi (“Carinhoso”), Publio Delgado, músico de rua, violonista sui generis (“Oración del remanso”), Rafael dos Anjos (violão), e André Vasconcelos (baixo). Beijos e abraços para todos, mas, muito especialmente, para Hamilton de Holanda, “o Jimi Hendrix do bandolim”, como é conhecido, por falta de um título melhor. O jornalista fica com a versão briosa e flamenca de “Cucurrucucú, paloma”, a música com mais “u” da história, e uma das mais regravadas. E lá se foi a pomba, chorando de amores, e Silvia depois dela, em voo rasante, porque sua formação em canto de jazz pela Escola Superior de Música de Catalunha deve ser notada de alguma forma. As pausas, as quebras inusitadas, a delatam.
Como sobremesa, o conhecido pot-pourri de grandes sucessos da música brasileira de ontem e hoje interpretados em coro pela cantora e o respeitável público, de “Não Deixe o Samba Morrer” a “Asa Branca”, “Dança da Solidão”, “Chega de Saudade”... Chegado o momento, um grupo de amigas e moradores do Rio de Janeiro pede à artista “Vestida de Nit”, esta responde com uma recriação improvisada a capella de “Ojos Verdes” em um salto duplo mortal sem rede, a capella. A temperatura na sala subiu vários graus. “Não sei se meu coração resiste a tanta emoção”, nos diz. Claro que o guaraná on the rocks ajuda.
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