Os indígenas que escaparam do extermínio
A saga do povo que sofreu um exílio forçado e renasceu depois de recuperar suas terras
Do pescoço para baixo, o corpo estava todo tingido com o preto do jenipapo, um fruto utilizado pelos indígenas para pinturas corporais e que demora dias para sair. O único traje era um calção verde de nylon até o joelho, um colar feito de dentes de onça e óculos escuros de lentes espelhadas que poderiam ser usados por um surfista. Mas a praia de Akã Panará é outra. A postura é de um velho guerreiro que ainda mantém força para resistir se preciso for, mas basta o ancião do povo indígena Panará começar a contar a história de sobrevivência deles para o sorriso aparecer.
Em 2017, fez 20 anos que eles concluíram seu retorno a uma parte de suas terras tradicionais no Rio Iriri, na fronteira do Mato Grosso com o Pará, deixando o Parque Indígena do Xingu (MT) depois de um longo exílio forçado que nem eles mesmos sabiam que estavam indo para passar tanto tempo.
Os Panará, também conhecidos como índios gigantes — havia o mito de que eram muito altos, mas o porte médio deles não passa de 1,70 metro — habitavam a Bacia do rio Peixoto de Azevedo, região que ia desde o município de Colider, no Mato Grosso, até o rio Iriri, no Pará. Eles são uma parte do retrato do que o “milagre brasileiro” do progresso na época da ditadura causou aos povos indígenas. A construção da BR-163, na década de 70, cortaria não só os estados de Mato Grosso e Pará ligando Cuiabá a Santarém, como também a terra onde moravam os indígenas, levando doenças e morte.
Esse contato com o homem branco durante a construção da rodovia fez com que a população dos Panará se reduzisse a menos de 80 integrantes. “O Cláudio [Villas Bôas] pediu para a gente ir para o Xingu, se não ia morrer todo mundo, e nós fomos”, contou Akã à reportagem, durante uma entrevista atrás de sua casa na aldeia de Nãsepotiti. “Começamos a fazer roça no Xingu, mas não tinha terra, nem floresta boa. Não nascia nada. Milho, mandioca, banana, não nascia. O mato também era ruim para caçar e o lugar não tinha as frutas que a gente comia”, Os recursos naturais no Xingu são diferentes dos existentes em Peixoto de Azevedo, o que dificultava atividades básicas de subsistência, da roça à construção de casas.
Dentro do Parque Indígena do Xingu, com uma área aproximada de 27 mil quilômetros quadrados, mudaram de aldeia sete vezes, sempre à procura de condições semelhantes a sua terra original, mas em nenhum lugar encontraram condições favoráveis para levar a mesma vida de abundância de alimentos que tinham antes. Outro indicador da não adaptação deles foi o baixo crescimento populacional. “Será que sobrou algum pedaço da nossa terra original?”, Akã perguntou a um primo, “porque essa aqui não vai dar”. Começava, então, a saga dos índios gigantes para descobrir se os brancos tinham deixado ainda um tanto de floresta ou se já haviam “comido tudo” com suas máquinas e tratores.
Indignação e terra destruída
Com a ajuda do ISA (Instituto Socioambiental), que tinha sido fundado havia pouco tempo, realizaram um sobrevoo da área. O cenário trouxe tristeza. Onde um dia nasceram árvores e alimentos, brotavam apenas garimpeiros, madeireiros e desmatamento.
De acordo com Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA, os Panará estavam indignados com o cenário de devastação que encontraram 20 anos após a saída deles. Mas, do alto, era possível ver uma área de mata que havia restado. “Vamos ficar aqui, sobrou terra, os brancos não comeram tudo!”, contou Akã.
Iniciaram-se, então, conversas com a Funai (Fundação Nacional do Índio) e uma batalha judicial que garantiria aos Panará não somente a demarcação de aproximadamente 495 mil hectares de terra, em 1996, como também uma indenização no valor de 1,2 milhão de reais, que os faria entrar para a história como o primeiro povo indígena no Brasil a ser indenizado pela União por danos morais e materiais devido às consequências da construção da BR-163.
O retorno
Os Panará são os últimos descendentes dos Cayapó do Sul, um numeroso grupo que habitava a região de Minas Gerais e havia sido considerado extinto. Nos anos de 1970, eles ocupavam dez aldeias e tinham uma população estimada entre 300 e 600 indivíduos. Quando foram transferidos para o Parque Indígena do Xingu, em 1975, eram 79. Os dados constam no livro Panará, a Volta dos Índios Gigantes, produzido pelo ISA, com ensaio do fotógrafo Pedro Martinelli e texto dos jornalistas Ricardo Arnt, Lúcio Flávio Pinto e Raimundo Pinto. O retorno teve início em 1995 e ainda seriam necessários mais três anos para que eles abandonassem de vez o Xingu para inaugurar a aldeia Nãsepotiti, com 178 pessoas.
Atualmente, os Panará somam mais de 600 pessoas em cinco aldeias. Se o que queriam era fartura, conseguiram. Eles plantam milho, batata, cará, banana, mandioca, abóbora e amendoim. Também tem muito peixe e muita caça. As crianças crescem fortes e saudáveis.
“Fiquei muito feliz de voltar porque esse é o nosso lugar, aqui que está a nossa tradição e aqui tem a comida nativa. Por isso nós aumentamos. Aqui, nasceram muitos bebês”, afirma Akã.
Sinku Panará é o cacique da aldeia Nãsepotiti e foi a primeira criança que nasceu no Xingu. Ele lembra das viagens de Akã e das reuniões que eram realizadas para discutir sobre o retorno à terra ancestral. “Eu saía para caçar com meu pai e ele sempre falava que ali no Xingu não era bom, que não tinha as frutas comestíveis e que a gente precisava voltar porque aqui sim tinha comida boa”, diz. “Por isso que hoje fico feliz com a quantidade de crianças na aldeia. E eu quero que a gente ainda cresça mais para o branco ver que a gente voltou e conseguiu.”
Todos os direitos desta reportagem são de uso exclusivo do Believe.Earth, onde a matéria foi publicada originalmente, e El País. Matéria parcialmente financiada por meio de uma bolsa de reportagem concedida pelo International Center for Journalists (ICFJ). Este conteúdo tem apoio do Instituto Socioambiental(ISA) e Greenpeace.
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