Cristiano Ronaldo, assim na área como no céu
Foi o arremate de um atacante que demonstra poder voar depois de ter jogado dez anos pela janela
Cristiano Ronaldo marcou o gol de uma geração. O gol que durante dez anos no Real Madrid ele tentou de todas as maneiras e contra todos os rivais, sempre com resultado catastrófico: queria dar uma bicicleta e saía um meme. Nos últimos cinco anos, cada tentativa era acompanhada, assim que decolava do chão, de um resmungo de resignação, como se aquilo fosse o pedágio do ídolo que exige para si um capricho inocente.
A tribo que adorava King Kong lhe dava jovenzinhas sabendo que nunca se apaixonariam por ele; os companheiros de Cristiano o deixavam chutar bolas impossíveis para que ele pudesse ensaiar a bicicleta que não sairia. Este gol, o gol de Cristiano em Turim, a bicicleta histórica que penetrou sob as traves de uma lenda viva, Gigi Buffon, no melhor palco do mundo, a Champions League, é o gol que nos torna mais velhos de repente. O gol que o Real Madrid de Cristiano Ronaldo precisava para deixar na memória da Champions algo semelhante ao que Zidane deixou em Glasgow. Três Champions em quatro anos depositaram emoções, riscos e o milagre de Sergio Ramos em Lisboa. Mas até agora não havia a beleza plástica de um gol monumental, um chute a essa altura, com tanta força e colocação, de costas para o mundo. Foi o arremate de um atacante que demonstra poder finalmente voar depois de ter jogado dez anos pela janela.
O jogo foi resumido há um ano por David Torres em um livro, Por Orden de Desaparición, que revê cadáveres ilustres sem incluir, embora o pareça, a biografia dos adversários europeus do Real Madrid nos últimos dois anos. Nele se conta que, quando terminou de ler Cem Anos de Solidão, Norman Mailer disse que não entrava em sua cabeça como Gabriel García Márquez, em duas páginas, podia resumir a genealogia de semelhante família, com suas vidas e suas mortes, seus avatares e aqueles nomes tão longos e repetitivos. “Em duas páginas eu só tenho tempo de tirar um barco do Nilo”, disse.
Em dois minutos em Turim, o Real Madrid teve tempo para contar sua história sem deixar de fora uma data e um goleador, e ao mesmo tempo foi tirando em silêncio o barco do Nilo para apresentá-lo diante de Buffon. Naquele momento, o torcedor da Juventus já não sabia onde começava e acabava a serpente. Se a câmera enquadrava acima apareciam Raúl González e Emilio Butragueño; se a câmera ia para o banco, aparecia Zinedine Zidane. Quando finalmente a câmera se apoiou no campo, o herdeiro de todos eles estava marcando o primeiro gol. A velocidade de CR7 somada à eficácia sobrenatural do Real Madrid o converte em presente contínuo: não existe outro tempo verbal mais ajustado para ele.
A construção do Real Madrid como monstro mitológico capaz de explorar tudo de uma forma insana, até o mínimo erro do adversário ou sua menor virtude, se explica com as atuações de Keylor Navas. Se um fax quebrado que estava no Bernabéu e que ninguém sabia o que fazer com ele rendeu duas Champions, o que não se fará com um jogador de 33 anos em suposta decadência, que a cada ano se pensa em vender, a não ser colocá-lo para voar no meio do campo para que marque um dos gols mais bonitos e esperados da história do Real Madrid. Um gol que muitos nem sequer comemoraram gritando gol, mas berrando “ele conseguiu, ele conseguiu, ele conseguiu”.
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