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“A intervenção é uma tragédia, mas é um fato. Vamos transformar esse limão em uma limonada”

Ibis Pereira, ex-comandante da PM-RJ, defende fiscalização e pressão para debater pontos estruturais. "Fiz com Marielle Franco a ponte entre a Comissão de Direitos Humanos e as famílias de policiais"

Ibis Pereira.
Ibis Pereira.Facebook
Felipe Betim

Íbis Silva Pereira, coronel da reserva, chegou ao posto de Comandante Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro no final do 2014 de forma interina para estancar uma crise. Também comandou a folha de pagamentos da corporação, a Escola Superior de Polícia Militar, a chefia de Gabinete do Comando Geral, entre outros cargos de destaque. Paralelamente, desenvolveu uma rica vida acadêmica: graduou-se em Direito, fez uma pós-graduação em Filosofia e outra em Gestão de Segurança Pública, se tornou mestre em História da UFRJ e agora, já na reserva, faz um doutorado em História na mesma instituição. Filiou-se ao esquerdista PSOL depois de deixar a corporação, em 2016, à convite da vereadora Marielle Franco, executada na última quarta-feira. "Por acompanhar sempre de perto o mandato do Freixo, passei a conviver com a Mari. Quando estive no comando da PM já era amigo dela", conta ao EL PAÍS. Naquele mesmo ano, ele assessorou a campanha de Marcelo Freixo para a prefeitura do Rio.

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No último dia 9 de março, Pereira conversou com este jornal durante uma hora e meia sobre a crise na segurança pública do Rio de Janeiro e do Brasil e as questões estruturais e conceituais por trás dela. Para ele, a falência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como projeto de aproximar a polícia dos cidadãos está relacionada a uma falta de clareza sobre o papel do próprio policial. Neste sábado, Pereira voltou a conversar com o EL PAÍS, desta vez sobre o assassinato da vereadora do PSOL. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

A proximidade com Marielle

"Eu sempre tive muito interesse no mandato do deputado Marcelo Freixo. As bandeiras do Marcelo, a preocupação com a vida e a sorte dos mais pobres, o respeito e a defesa e a promoção dos direitos humanos sempre foram temas que me impulsionaram. Isso tem a ver com o modo como entendo o papel da polícia no Estado Democrático de Direito. Para mim, o policial deve ser, acima de tudo, um agente promotor e garantidor da dignidade humana. Quando não consegue entender esse papel, se torna uma ameaça e não um instrumento a serviço da civilização. Por acompanhar sempre de perto seu mandato, passei a conviver com a Mari. Quando estive no comando da PM já era amigo dela. Tive a oportunidade de fazer com ela uma espécie de ponte entre a Comissão de Direitos Humanos da ALERJ e as famílias de policiais mortos ou feridos em serviço ou fora dele. A comissão realiza uma belíssimo trabalho de amparo às vítimas da violência no Estado. Infelizmente algumas pessoas não conhecem essa atuação ou preferem ignorá-la. Em março de 2016, foi a Mari que me convidou para entrar para o PSOL.

Fico extremamente perplexo e indignado quando ouço essas vozes a criticarem os direitos humanos como se isso fosse, como dizem, algo destinado à proteção de bandidos. Pura estupidez, maldade e burrice. Esse discurso, na verdade, traduz uma mentalidade secular entre nós. Uma mentalidade de ódio contra qualquer avanço do país no sentido da redução de suas desigualdades históricas e injustificáveis. Penso que essas pessoas que defendem a ideia de que bandido bom é bandido morto reproduzem as ideias da Casa Grande, dessa gente que odeia pobre, que odeia negros, que desejariam que o Brasil ainda tivesse escravos, porque querem que a obra secular de desigualdade e injustiça prossiga matando preto, pobre e morador de favela. Infelizmente muito policiais pensam assim. A polícia muitas vezes reproduz essa mentalidade, porque sendo um aparelho de Estado reproduz as ideias dos donos do poder. Uma lástima. Por outro lado, o campo progressista precisa encontrar um discurso que fale ao policial. Há uma disputa de narrativa que nós estamos perdendo".

O campo progressista precisa encontrar um discurso que fale ao policial. Há uma disputa de narrativa que nós estamos perdendo

Como as UPPs começaram como uma boa ideia

"As UPPs surgem em 2008 como uma ideia bem intencionada que gravitou na cabeça de algumas pessoas. Eu participei no primeiro momento, em dezembro, quando me disseram que haveria uma ocupação na favela Santa Marta. Me envolveram porque a ideia era trabalhar numa perspectiva de policiamento comunitário, replicando o que o Governo Brizola trouxe de forma pioneira para a América Latina inteira (mas que a direita sabotou). Ninguém falava em UPP. Na sequência, em fevereiro, sem nenhum planejamento, Batã e Cidade de Deus foram ocupados, com a justificativa da experiência do Santa Marta. O projeto retoma em junho de 2009 e já entra com a marca UPP. E daí em diante começou a ruína, porque ela começou a se multiplicar em uma velocidade muito grande. O que ela estava fazendo? A gente fez para depois pensar. 'Isso aqui é uma coisa nova e de proximidade'. Mas enquanto isso, o programa está crescendo, novas pessoas estão fazendo concurso, estão sendo formadas e sendo designadas para trabalhar com esse novo. Comandei duas escolas da polícia, em 2010 e 2012. E não existia um manual de polícia comunitária, quatro anos depois da inauguração da primeira UPP. O plano de policiamento de proximidade foi publicado em 2015. Isso depois de inaugurar 38 UPPs".

As UPPs traduzem um problema conceitual das polícias brasileiras

"A ideia era reaproximar a polícia e o cidadão. Mas temos um problema conceitual que é uma questão central da polícia brasileira. Afinal, o que é segurança pública? O que é polícia? Qual é a função da polícia na democracia? A Constituição diz que segurança pública é um direito, mas quando você olha para o artigo 144, ela diz que é uma atividade exercida por alguns órgãos e tendente a garantia da ordem, da incolumidade e do patrimônio das pessoas. E isso é dizer tudo e nada ao mesmo tempo. A Constituição de 88 é a primeira a ter um capítulo apenas para segurança pública, mas ele nunca foi regulamentado. Isso significaria dizer o que é segurança publica, o que é ordem no estado democrático de direito, quais são as atribuições da polícia... Precisamos dizer para as polícias o que o Estado Democrático de Direito entende por segurança pública. Dizemos lá na Constituição que vamos construir uma sociedade livre, justa e solidária, e a polícia tem que estar envolvida com esse objetivo fundamental. Se de fato optamos pelo Estado Democrático de Direito, estamos dizendo o seguinte: "Olha, estado policial, não". Ele não prende e encarcera da maneira como estamos fazendo. Em 2008, com as UPPs, dizemos que começamos algo novo, fundado em uma nova perspectiva. Mas para sair do discurso para a prática, você tem que formar pessoas a partir dessa perspectiva. Se não temos conceito, não conseguimos fazer isso. E esse é um ponto fundamental no Brasil: não temos estrutura de governança, não temos plano nenhum e temos um problema conceitual muito grave. No momento em que você precisa reproduzir uma instituição, que está toda hora recebendo gente aposentando gente, você precisa dizer para essa pessoa qual é função dela, você precisa formá-la"

O modelo policial brasileiro é covarde com as polícias, especialmente a militar. Ela é vítima e vitimizadora"

Como as omissões do Estado levaram a atual crise de segurança pública

"Olha só o conjunto das nossas tragédias: nós não temos conceitos claros, definidos, porque não regulamentamos a Constituição; não temos sistema porque não regulamentamos a Constituição; e não temos uma política de segurança pública. São ações desdobradas em médio e longo prazo que não conseguimos dar continuidade. A gente não deu continuidade as às UPPs, que estão em ruínas, apesar dos resultados interessantes iniciais. As coisas ficam gravitando no campo das vontades. Com todas essas ausências, você pega a Polícia Militar, que não trabalha com investigação e sim com policiamento ostensivo, e coloca essa polícia dentro da favela. Além disso, você não muda nada na política de drogas, você continua na guerra contra ela. O discurso sempre foi o seguinte: 'Ah, a polícia está aqui por causa da arma'. Mas caramba, o que a gente faz com as drogas? Nunca ficou claro para o policial, e isso é uma das grandes hipocrisias que existe no Brasil, cuja vítima maior é policial e a população pobre e favelada. É uma covardia o que se faz com os policiais brasileiros. Tem um problema que é gravíssimo, um modelo policial esquizofrênico e você não tem clareza de enfrentar. Você continua apostando na perspectiva da guerra com uma polícia que está nas ruas demandada para agir e que não trabalha com investigação criminal. Essa polícia vai procurar resultado onde? Se ela não investiga, mas precisa apreender fuzil, ela vai fazer isso onde? No aeroporto internacional do Rio de Janeiro, onde para entrar precisa ter inquérito, mandando de busca e apreensão? Ela vai atuar onde não precisa investigar, porque ela só trabalha privilegiando o flagrante. Onde é isso? Na favela. Então o modelo policial brasileiro é covarde com as policiais, especialmente a militar. Ela é vítima e vitimizadora".

A crise das UPPs e seus desdobramentos

"Em 2014, já se falava em freio de arrumação. A crise começa em 2012, no Alemão, onde morre a primeira policial da UPP, a Fátima. No ano seguinte teve o caso Amarildo. Então essa crise não é de agora. É claro que se você tem um lugar sem polícia, mas de repente coloca 400 policiais, isso vai produzir um efeito no curto prazo. Mas no médio e longo prazo, os problemas vão começar a aparecer. A polícia não pode estar ausente do território, mas para isso você precisa de uma série de mudanças. Um discurso que cola até hoje é o de que os serviços públicos só entram depois da polícia. Isso é um perigo, uma ameaça para democracia. O discurso certo é: 'segurança pública começa com segurança social'. Mas dizer que a polícia tem que ser uma porta de entrada para outros direitos... Isso é um estado policial. Polícia serve para quê? Para mim, não existe para acabar com conflito, mas sim para administrar o conflito. Para isso, ela precisa de mecanismos, inclusive jurídicos. Temos uma polícia fragmentada empurrada para dentro da favela, vítima dessas esquizofrenias. Mas existe um certo discurso do campo da esquerda que olha para o que está acontecendo como se um policial saísse do serviço dizendo "ah, hoje vou matar um pobre na favela". Isso não existe. O Exercito faz uma coisa muito legal que é o principio da massa: entra com 1.500, 2.000 homens, para não ter reação. Porque o outro lado não é maluco de reagir contra isso tudo. A polícia entra com 10 homens depois de receber uma demanda do 190, que burocraticamente despacha uma viatura pra lá. E claro que vai ter troca de tiros! Isso é covardia com os policiais. Se você é um desses 10 policiais, como você entraria numa favela dominada pelo tráfico armado até os dentes? Atirando. Aí quando acontece o problema, de quem é a culpa? Do policial, que acaba sendo execrado pela opinião pública".

Para um certo discurso do campo da esquerda, é como se um policial saísse do serviço dizendo "ah, hoje vou matar um pobre na favela". Isso não existe

A gente não tentou uma política para redução de homicídios, a gente não tem sistema, a gente tem polícias fragmentadas, e a que está na rua não investiga e vai ser empurrada pro conflito. As instituições são ilhas, só funcionam quando querem e mesmo assim por muito pouco tempo. Para você resolver problemas de médio e longo prazo, precisamos amarrar as instituições em torno disso. Porque as pessoas passam, mas as instituições ficam. Mas como não temos sistema, as coisas só funcionam ao sabor das vontades individuais. Com o passar do tempo, os programas morrem. Não vamos sair dos patamares assustadores para civilizados em 4 ou 8 anos, mas sim em 15, 20 anos. Política pública é isso".

Como a Polícia trabalha para o sistema de Justiça e não para o cidadão

"A lei não dá margem para as polícias. Elas não trabalham pro cidadão, mas para o Ministério Público e para ao juiz. As nossas polícias são demandadas o tempo inteiro a transformar os conflitos em um tipo penal, numa narrativa que pode ser transformada numa denúncia que possa ser analisada por um juiz. Uma mulher, até ser espancada, ela passa por uma série de constrangimentos que muitas vezes não podem ser facilmente convertidos num tipo penal. Não adianta ela ir na delegacia e procurar a polícia. O modelo brasileiro funciona só quando tem materialidade, que é a agressão, é a ameaça, é a lesão corporal ou coisa pior. Agora, caso as polícias passem a operar como administradora do conflito, isso tem significar uma revolução completa na legislação brasileira. O poder de decisão de atuar no conflito antes que ele evolua tem que estar disponível para as polícias. E aí você precisa capacitá-las legalmente para dizer 'olha só, essa droga aqui eu estou pegando na sua mão, você ali para delegacia para vai assinar um papel e passar a prestar para a comunidade'. Algo coisa que possa resolvida em uma instância mais próxima das pessoas. Mas hoje ela trabalha dentro de uma lógica punitivista para o sistema de Justiça e não para a população".

Como mudar a abordagem ainda que as drogas permaneçam proibidas

"Isso tudo pode ser feito independente de legalizar as drogas. Eu sou abolicionista, quero a legalização total. Mas ainda num contexto proibicionista, você pode lidar com a questão da repressão de uma outra maneira. Mas isso é decisão política. Num modelo como o nosso, fragmentado, isso significa você dizer o seguinte: 'A partir de agora, a polícia não vai mais entrar em favela pra trocar tiro com o tráfico. Não vai. A não ser quando houver guerra entre traficantes para proteger a população. A não ser quando ela estiver amparada numa investigação muito bem feita. Ela não vai passear na favela pra pegar fuzil e traficante que está vendendo. Nós vamos investir numa polícia inteligente pra atuar dentro de outra perspectiva'. Mas isso é um ônus. A hora que você fizer isso, os legalistas, com o modelo que a gente tem, vão dizer o seguinte: 'Mas como? Ele está na posse de um fuzil, está cometendo um crime'. E aí o governador vai estar prevaricando, o secretário de segurança vai estar prevaricando... Precisamos ter a coragem de enfrentar esse temas, porque agora estamos falando de intervenção, mas amanha vamos estar falando em estado de sítio. Os problemas não vão se resolver com o Exército dentro da Vila Kennedy. Os problemas são de ordem estrutural, conceitual, legal".

Vamos cuidar da intervenção, vamos acompanhar para que nenhum abuso seja cometido e vamos verificar que tipo de legado pode surgir. Vamos transformar esse limão em uma limonada.

O desafio de dar uma resposta a curto para o drama vivido nas favelas

"A gente precisa ter uma resposta para drama que a favela passa na mão do crime, porque isso é um problema concreto. Essas pessoas estão sendo oprimidas, seja pelo tráfico, seja milícia. É muito fácil pra quem não mora na favela dizer isso, romantizar. E esse é o problema que a gente tem no campo progressista. A gente quer falar pelo pobre, pelo favelado. Cara, tem que falar olhando o drama que ele está passando. Ele quer polícia, mas não essa que está aí. Ele quer outra. Ele não quer uma polícia que numa operação não coloque em risco a vida de menina dentro da escola ou de um bebê no ventre da mãe. A polícia, para entrar na favela, tem que saber quem está mandando entrar, quem assume a responsabilidade, quem deu a ordem para entrar, se teve a preocupação de planejar essa entrada, reunir os meios necessários para entrar. Ele não pode entrar no Santa Marta do mesmo jeito que no Chapadão. Até agora não temos um protocolo decente pra fazer operação em favela, e é possível fazer. A inteligência pode dar os dados sobre os problemas de cada uma. Com planejamento, uma ação pode ter um mínimo de garantias de que vai ser feita com planejamento, com a disponibilização de meios humanos e recursos materiais para que os riscos e a possibilidade de que ninguém seja ferido ou morto seja trazido a um patamar mínimo. Isso pode ser feito pra ontem. É algo concreto, mas que precisa de uma decisão política. É difícil com a crise política que vivemos, porque você vai encontrar reação na galera que acredita que bandido bom é bandido morto. Tem que ter Governo disposto a pagar o ônus. Não é um tecnocrata que vai decidir e nem um interventor que vai elaborar isso. É para isso que a gente vota”.

Intervenção federal: como transformar limão em limonada

"A intervenção é uma tragédia, mas discordo daqueles que dizem que temos que fazer oposição a ela. Ela é fato, já está aí. Não adianta dizer que o Rio não é o Estado mais violento. Isso não é argumento.Primeiro porque você está comparando o horroroso com o insuportável. Além disso, a dinâmica criminal que temos aqui não é vista em outros Estados. Diante disso, o que a gente vai fazer? Vamos cuidar da intervenção, vamos acompanhar para que nenhum abuso seja cometido e vamos verificar que tipo de legado pode surgir. Vamos transformar esse limão em uma limonada. Esse é o momento pra fazer as mudanças que precisam ser feitas. A gente tem eleição esse ano, os Governos que assumirem no ano que vem tem que ter clareza com os desafios a serem enfrentados. Precisa pensar na política de armas, reformar as instituições policiais, complementar a Constituição, repensar o sistema de Justiça criminal, viabilizar a polícia como instrumento de administrar conflitos e não instrumento de guerra. Vamos transformar essa tragédia numa ocasião pra repensar a segurança pública. Mas não pode ser dessa forma atabalhoada, a gente não pode discutir o novo modelo sem ouvir as polícias. Não podemos empurrar isso goela abaixo dos policiais. Isso tem que ser feito respeitando os policiais. O campo progressista está muito vinculado ao pensamento marxista de que a polícia é um instrumento de dominação de classe. Mas o policial é um trabalhador, dentro da polícia há gente querendo mudar. Esse policial está morrendo. Precisamos entender o drama humano e encontrar a maneira de envolver esses agentes na mudança. A gente precisa compreender da população pobre que está morando dentro da favela, vítima de opressão da milícia, do policial e do traficante. E precisamos criar uma polícia efetivamente comprometida com a libertação dessas pessoas, e isso passa pelo empoderamento dessas comunidades. Isso é um trabalho da democracia que em 30 anos não conseguimos fazer. Podemos aproveitar a intervenção pra trazer essas questões à tona. Mas se ficarmos chorando pelos cantos, a galera que não está chorando e está se movimentando vai ganhar na disputa de narrativa".

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