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Sem alimentos, 64% dos venezuelanos dizem ter perdido 11 quilos em 2017

Escassez faz estragos na saúde dos cidadãos, conforme sondagem realizada por pesquisadores do país

Florantonia Singer
Posto de venda de frutas e verduras em Caracas.
Posto de venda de frutas e verduras em Caracas.MARCO BELLO (REUTERS)
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A crise alimentar está fazendo estragos na saúde dos venezuelanos, de acordo com uma sondagem feita por pesquisadores do país sul-americano. A maioria reduziu o tamanho da roupa e vai dormir com fome. 64,3% dos entrevistados reconhecem ter perdido onze quilos de peso em 2017. A cesta básica que o Governo vende a preço controlado só chega a 12,6 milhões de pessoas, pouco mais de um terço da população.

Mandioca e arroz. Essa é a base da dieta da maioria dos venezuelanos. A farinha de milho pré-cozida, ingrediente básico da arepa, prato emblemático da culinária do país, perdeu espaço pela primeira vez entre os principais itens que os cidadãos do país sul-americano buscam para se alimentar. A crise alimentar que a Venezuela atravessa tem uma expressão dramática no tamanho da roupa dos cidadãos e no que comem, de acordo com os resultados correspondentes a 2017 da Pesquisa de Condições de Vida do Venezuelano, realizada desde 2014 por pesquisadores de três das instituições acadêmicas mais importantes do país, as universidades Central da Venezuela, Católica Andrés Bello e Simón Bolívar.

“As pessoas estão desenvolvendo estratégias para sobreviver, não para se alimentar. Já não é possível sequer substituir alimentos. A queda no consumo de farinha de milho, um alimento que, pelas leis venezuelanas, é enriquecido com ferro e vitaminas, é dramática, assim como a de hortaliças e frutas, que fornecem os micronutrientes”, diz a doutora Marianella Herrera, membro da equipe de pesquisadores.

Na pesquisa de 2017 foi incluída pela segunda vez a questão sobre a perda de peso que os cidadãos relatam. Em 2016, a maioria disse ter perdido 8 quilos, três a menos do que no ano seguinte, indicando que a desnutrição dos venezuelanos aumentou e os levou a perder ainda mais peso, seguindo uma dieta que Herrera chama de anêmica, pela carência do ferro fornecido por carnes, verduras de folhas verdes e farinha de milho nacional, cada vez mais escassa e que o Governo substituiu por versões importadas não enriquecidas — como a farinha de milho mexicana, que serve para fazer tortilhas, mas não arepas — que são distribuídas pelos CLAP (Comitês Locais de Abastecimento e Produção), controlados por apoiadores do Governo.

Em contraste, 7,2% das pessoas que participaram da pesquisa relataram ter ganhado cerca de 7,6 quilos de peso; um dado que, segundo Herrera, também não revela bem-estar. “Uma dieta baseada em tubérculos e farinhas só pode fazer com que alguns engordem, mas não os tira da epidemia de desnutrição que vivemos, aí também existe uma fome oculta”.

Os resultados apresentados pelos acadêmicos quantificam o drama da fome na Venezuela e do acelerado crescimento da pobreza, que na pesquisa atinge 87% da população. A pesquisa expõe a radiografia de um país sem dinheiro, uma realidade difícil de esconder nas ruas e nos estômagos dos cidadãos, mas que o regime de Nicolás Maduro se empenha em ocultar ao não divulgar informações estatísticas há cinco anos (e no caso de alguns indicadores, há mais tempo ainda). Os dados foram coletados entre julho e setembro do ano passado, razão pela qual os pesquisadores fazem a ressalva de que não refletem toda a deterioração provocada pelo processo de hiperinflação que o país vive desde novembro.

Baseado em uma amostra nacional de 6.168 famílias, o estudo também revelou que 8.130.000 venezuelanos comem duas ou menos vezes por dia. O café da manhã é a refeição mais sacrificada em casas onde 61,2% dos entrevistados dizem que vão dormir com fome. “Temos relatos dramáticos de mães que têm que decidir qual filho irão alimentar com proteína um dia e qual não. Isso é dramático”. De acordo com Herrera, e fazendo um cruzamento de variáveis com diferentes indicadores, pode-se dizer que na Venezuela 80% das famílias sofre de insegurança alimentar.

Ferramenta de controle

A cobertura das missões — programas sociais que se tornaram bandeira da propaganda do chavismo e também uma ferramenta clientelista de controle político — caiu drasticamente, de acordo com a pesquisa. Em 2017, menos de 200.000 pessoas disseram ter se beneficiado da missão Barrio Adentro, criada em 2003 por Hugo Chávez com a cooperação do Governo de Cuba, que trouxe dezenas de milhares de médicos da ilha para atender nos bairros e lugarejos mais pobres do país.

Agora, toda a política social está centrada nos CLAP e nos bônus em dinheiro que são entregues através do chamado cartão da pátria. Dos 13,4 milhões de pessoas que se beneficiam de algum dos programas sociais do Governo, 12,6 milhões recebem alimentos. Esse número também corresponde à cobertura do cartão da pátria: em três de cada quatro domicílios venezuelanos algum de seus membros tem um desses cartões que o chavismo começou a implementar no ano passado para dar benefícios e que usou nas recentes eleições para governadores e prefeitos como ferramenta para coagir o voto.

“Observamos que o venezuelano vê que o cartão da pátria é um registro que lhe permitirá receber o que o Governo for distribuir, que não está necessariamente relacionado a uma adesão política do cidadão, porque se assim fosse o Governo teria pelo menos 75% de aprovação, mas, sem dúvida, é uma ferramenta de controle que, devido à sua enorme difusão, poderia se tornar um documento com o qual o Governo pretenda regular o acesso dos cidadãos aos serviços”, adverte a socióloga María Gabriela Ponce.

A distribuição de alimentos através dos CLAP, longe de aliviar a crise alimentar do país, exacerba as desigualdades, apontam os pesquisadores. A frequência de recebimento da cesta básica é discricionária e intermitente. Pouco mais da metade dos domicílios beneficiários não a recebe periodicamente e o número sobe para 69% nas pequenas cidades e aldeias, onde a pobreza é maior. Em contraste, em Caracas, 64% dos beneficiários dizem recebê-la mensalmente e 24% a cada dois meses.

Migração e desemprego

A pesquisa mediu pela primeira vez o fenômeno da migração, algo novo para um país que historicamente foi receptor de estrangeiros. O estudo avalia a diáspora dos últimos cinco anos. Em 9,7% dos lares há pelo menos uma pessoa emigrante ou que envia remessas.

“Em média, foi reportado 1,3 emigrante por lar, de modo que se estima que entre 2012 e 2017 devem ter emigrado para o exterior algo mais de 815.000 pessoas”, afirma o relatório, destacando que 12% desses lares se encontram nas camadas mais pobres, e que quase 80% desse total deixou o país em 2016 e 2017, o que revela que a migração é um fenômeno motivado pelo agravamento da crise. Colômbia, Panamá, Chile, Argentina, Equador e Peru são os novos destinos.

Pela primeira vez em quatro anos foi registrado um aumento no desemprego. Em 2017 a cifra estava em 9% da população economicamente ativa, quase dois pontos percentuais a mais do que em 2016, o que significa que pelo menos 200.000 pessoas perderam seu emprego em um ano. Cerca de 60% da população tem empregos informais.

O relatório também aponta que um milhão de crianças e adolescentes entre 3 e 17 anos estão fora do sistema escolar. Mas a crise dos serviços e a fome também impedem que os menores matriculados assistam às aulas normalmente: três em cada quatro alunos falta com frequência por causa de falhas do transporte e da má alimentação.

No quesito saúde, o país está exposto a um choque prolongado, descreve o pesquisador Marino González: “Temos o pior desempenho em mortalidade materna da região, que aumentou 30% desde 1998 — só superado por Cuba —, e a pior desproteção da América, pois 68% da população não conta com apólices de atendimento de saúde nem públicas nem privadas”.

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