Ele respondeu ao beijo com os lábios duros, refratários
Sinta uma repulsa demente. Não por ela, mas pelo que fizeram: pelo que fizeram a si mesmos
Estão juntos há quinze anos. Depois de muito tempo, fazem algo que antes faziam com frequência: vão a um recital em um parque. Surpreenda-se quando o cheiro dos banheiros químicos misturado com o da comida de dezenas de vendedores ambulantes, que antes o entusiasmava, agora lhe cause enjoos. Pense que ela, de todo modo, parece contente, despreocupada. Comam algo. Passeiem. De vez em quando, lhe pergunte: “A que horas começa?”, no mesmo tom em que lhe pergunta: “Pagou o seguro do carro?”. Saiba que ela detectará na sua voz a nota de chateação. Note como se contrai ao responder: “Falta uma hora”, para depois submergir em um silêncio áspero. No entanto, quando o recital está para começar, ela lhe pega alegremente pela mão e lhe puxa para a frente, procurando lugar entre a multidão. O senhor tinha esquecido esse brio, essa firmeza. Sinta um raio de admiração, que desaparece rápido. Ela se volta e o olha com um sorriso pleno. Sinta que ela não está feliz: que atua desesperadamente como se estivesse. Quando o conjunto entra no palco, ela grita, salta. Sinta-se desconfortável, envergonhado, como se estivesse com uma mulher desconhecida, escandalosa. Pergunte-se: “Ela era assim antes?” E depois: “Antes de quê?” De repente, na metade de um assunto, ela se pendura em seu pescoço e o beija visceralmente, como se quisesse matá-lo. Responda ao beijo com os lábios duros, refratários. Sinta que ela é um anzol tentando capturar a recordação de uma recordação morta, um grande instrumento inútil fazendo esforços para voltar a tocar. Sinta que tudo é grotesco e falso, um conto que ela conta para si mesma porque nunca deixará de buscar no senhor o herói que jamais foi, ou que foi antes, ou que fingiu ser quando ela era alguém a quem o senhor cobiçava. Sinta uma repulsa demente. Não por ela, mas pelo que fizeram: pelo que fizeram a si mesmos.
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