Como a menina que apanhava do pai virou a bailarina de tango mais emblemática do mundo
María Nieves Rego, que agora ganha um filme sobre sua vida, dançou a vida ao lado de Juan Carlos Copes
Recolhe o prato do jantar, vai até a cozinha e o lavabo. Retorna à pequena mesa que está grudada à parede no vestíbulo e reexamina as caixas de remédios para ver se se esqueceu de tomar algum (embora tenha perdido a fé em que os medicamentos sirvam para alguma coisa). Senta-se no sofá da sala, as costas contra as almofadas impecáveis, como também está impecável o móvel da televisão e o pequeno banheiro impecável e o impecável quarto em que dorme e no qual, sobre uma cômoda, há retratos dela mesma, imponente e empertigada, o cabelo curtíssimo, os olhos solares, fumando com piteira; e também estão impecáveis o quarto onde guarda os vestidos de baile dos últimos anos – pretos, com brilhos e decotes colossais – e o pequeno pátio impecável com o varal de estender a roupa que lava à mão porque não tem máquina de lavar roupas. Talvez dê algumas pitadas no cigarro eletrônico. Talvez, agora que desligou o rádio que permanecia ligado desde a manhã, veja um programa no NatGeo. Talvez revise as coisas que tem de fazer no dia seguinte: ir ao supermercado, telefonar para alguém. A persiana do apartamento – num andar térreo que dá para a rua num bairro de Buenos Aires perto de Palermo – está abaixada, mas sempre está abaixada: de dia, de noite. São oito horas. Em breve irá dormir. Essa é a vida agora? Essa é a vida agora?
No princípio é a voz. Uma voz ao telefone que soa áspera, inquieta, que diz “Alô” como quem pergunta “Quem está me incomodando?”, e que só depois se lança em uma conversa irritadiça.
– Agora nem me maquio. Para quê? Se já deixei de dançar. Depois do filme, disse: “Vou descansar”, e desabei. As artérias entupiram e não posso dançar. O médico me disse que, se for operada, fico pior. Desde os 11 eu fumava quarenta ou cinquenta cigarros por dia, menina. Agora tenho dor quando caminho, começo a mancar, e não gosto que as pessoas me vejam assim. Jurei a mim mesma que ninguém iria me ver decadente. Sempre fui reticente à imprensa. Agora, como já tenho minha biografia e um filme, digo que quem quiser saber algo que veja isso. Mas se você quiser, venha e conversamos. Ligue-me um dia antes, para o caso de eu me esquecer.
Mas, no dia anterior à entrevista, María Nieves Rego (82 anos, a bailarina de tango mais emblemática da Argentina, ao lado de Juan Carlos Copes – seu parceiro de dança durante mais de quatro décadas, seu par de tudo o mais durante períodos intermitentes nunca muito claros – formou a dupla de tango de palco mais reconhecida de todos os tempos, dançando no programa de Ed Sullivan e na Casa Branca, girando por meio mundo) não se esqueceu. Nesse dia o telefone toca poucas vezes.
– Ah, menina. Claro, estou te esperando. Mas não sei do que vamos falar, pois já tenho a biografia, e o filme.
A biografia se intitula Soy Tango, sua autora é a jornalista María Oliva, e foi publicada pela Planeta em 2014. O filme é O Último Tango, seu diretor é o argentino radicado na Alemanha Germán Kral, tem direção executiva de Wim Wenders e é de 2015. Ela considera que essas duas formas de exposição pública são suficientes para que se conheçam sua vida e obra.
– Não me vá tomar um dia inteiro, hein. Nem dois.
A campainha soa com tanta força dentro do apartamento que dá para ouvir da rua. Segundos depois, María Nieves cruza o hall do edifício com passo elástico. Tem o cabelo curto e um sorriso de palco: genuíno e, ao mesmo tempo, uma grande construção pensada para se projetar até a última fila da plateia.
– Oi, menina, entre.
No apartamento há um rádio ligado em volume discreto.
– Sente-se.
No vestíbulo, sobre uma mesa pequena, entre caixas com remédios, há um pacote de cigarros e um cigarro eletrônico. O piso de madeira brilha como cada objeto de decoração, como cada móvel. Tudo está mergulhado na luz de uma lâmpada de baixo consumo, mas ainda nessa semi-penumbra se pode ver que é uma casa refratária ao caos, um lugar onde as coisas estão polidas até a medula, como se tudo – as paredes, o piso, os enfeites – tivesse acabado de ser mergulhado em um enorme tanque de líquido de limpeza.
– Agora está tudo desse jeito. Quando eu estava bem, você não imagina como eu limpava.
Tem dedos compridos e unhas fortes que brilhavam quando posava, até há pouco tempo, em fotos nas quais aparece fumando com piteira, o corte do vestido expondo a perna até a virilha.
– Comprei este cigarro eletrônico há um ano. Tenho que me controlar. Pelas artérias. Depois do filme elas entupiram, desculpe, até o rabo.
Usa um fraseado teatral, modulado, fazendo pausas dramáticas, com frases recheadas de grosserias leves e uma gíria descarada – como bacán (pessoa que gosta de ostentar), yeite (sacada), cajetilla (metida a fina) – que viajou com ela desde o século passado, como tantas outras coisas viajaram com ela: as pernas compridas, o vício na lascívia do tango, o olhar malicioso que já tinha em fotos que a mostram, nos anos cinquenta, autoconsciente de uma beleza vândala, libidinosa.
– Você vai se assustar com o quanto sou mal-educada. Jamais imaginei que um filme desse tanto trabalho. E o diretor queria a briga com o Copes. Eu não quero nem falar no nome do Copes. Reconheço que foi o melhor dançarino de tango. Mas como sujeito, não. Eu já quero apagar a minha história. Não quero que me encham mais. Não posso mais fazer o que fiz a minha vida inteira, que é dançar. Então, falar não me interessa.
Um manejo excelso das inflexões de voz faz com que, em certos momentos, pareça uma mulher de mansidão absoluta e, em outros, um dragão surpreendido em cólera deslumbrante.
– Bom, vamos começar.
José Rego Rico. Entregador de leite. Galego chegado à Argentina num ano indeterminável do século XX. Marido de Josefa Freire Pértega, galega chegada a Argentina num ano indeterminável do século XX. Pais de cinco filhos. Dois mais velhos – Alfredo, Ñata – e dois mais novos: Cristina (Pirucha) e Cacho. No meio, dividindo as águas, nove anos de diferença com Cristina, María Nieves, vinda ao mundo em 6 de setembro de 1934 num hospital público e rapidamente transferida para o cortiço do bairro de Saavedra onde a família vivia.
– Minha mãe, coitada, uma submissa total. Nem falava. Meu pai, um filho da puta, um abusador. Não a deixava falar à mesa. “Cale a boca”, dizia-lhe, e lhe dava uma bofetada.
A vida da María Nieves parece, desde o começo, um tango detestável: um pai brutal, uma mãe analfabeta e submissa que inculcava em seus filhos o pudor e a virtude do perdão, a vida em cortiços sem banheiro, a vida sem dinheiro, a vida sem comida nem roupa.
– Eu não tinha brinquedos, por isso brincava com um sifão de água. Punha um paninho no bico e era a cabecinha. Dava beijinhos e dizia: “Vou te levar no médico”. Ao lado vivia minha madrinha. Quando ela me convidava para comer eu queria comer até a panela. A fome é uma coisa feia. E o desejo. Querer beber dessa garrafa e não poder e desejá-la. É feio.
– E quando terminou tudo isso?
– Quando comecei a trabalhar de empregada. De faxineira.
A família se mudou muitas vezes. Em 1943 viviam num cortiço da rua Pinto com mais três famílias e um só banheiro. Poucos meses depois de ter chegado ali, seu pai morreu de tuberculose e sua mãe ficou, aos 45 anos, viúva e com cinco filhos.
– Quando meu pai morreu, eu chorava porque via minha mãe chorar. Mas depois fiquei contente. Preocupava-me, porque pensava: “Agora vão nos expulsar daqui porque não temos dinheiro”. Por isso os mais velhos fomos trabalhar.
Sua mãe começou a limpar casas. Sua irmã Ñata e ela, que abandonou a escola, fizeram o mesmo. Tinha nove anos e foram trabalhar numa casa de dois andares em San Isidro, um bairro elegante nos arredores de Buenos Aires. A proprietária da casa batia nela porque não sabia limpar, porque tinha vergonha de sair à rua com o avental de empregada.
– Eu queria voltar para a miséria. Porque era livre. A nossa história foi dura, mas ao mesmo tempo bonita, porque te ensina a viver na boa e na pior. Por isso vivo humildemente. Agora a luz está acesa porque você está aqui. Se não, fico no escuro. Sabem quanto eu ganhava na primeira turnê que fizemos com Copes pelos Estados Unidos? Cinquenta dólares por mês. Foram direto para o Pinto y Núñez, o cortiço onde minha mamãe morava. Porque não queria mais que ela fosse faxineira. E consegui.
Aos 11 anos era uma empregada teimosa que queria se casar, ter filhos e uma casa. Então começou a frequentar a milonga.
A milonga é um ritmo musical, mas é também o nome que designa os locais onde se dança o tango em Buenos Aires. Nos anos 1940, o tango atravessava um momento dourado, mas não havia nada parecido com a dança de palco, só milongas que funcionavam em clubes ou associações de bairro frequentadas pelas classes mais populares, mulheres e homens que se provocavam por um olhar, uma traição ou um passo mal dado em pistas onde se dançava sem adornos. Ñata ia a uma milonga no lube Atlanta. María Nieves, que trabalhava limpando uma casa no outro lado da cidade, no bairro da Boca, começou a pedir a sua irmã que a levasse com ela. Ñata concordou, mas no início não a deixou dançar. O dinheiro mal dava para pagar a entrada, mas ia todos os fins de semana com sua única saia, com seus únicos sapatos furados cheios de papel. Quando o papel rasgava, pintava o pé para que o buraco não aparecesse. Em 1947, quando numa milonga chamada Estrella de Maldonado viu entrar um moreno que lhe cravou os olhos, tinha 13 anos e ainda não havia dançado uma vez sequer.
– Era boa pinta. Mas era um carrito, como chamávamos os que dançavam mal.
Ele se chamava Juan Carlos Copes e a convidou à pista com uma leve inclinação da cabeça. Ela baixou o olhar, em sinal de “não, obrigado”, mas pensou nele naquela noite, e em muitas das que se seguiram, apesar de não voltar a vê-lo.
– Sumiu por um ano e depois reapareceu no Atlanta. Ali já sabia andar, abraçar bem.
Copes tinha se transformado num bailarino de respeito. Ela já era experiente na pista e havia incorporado tudo o que seria depois: os olhos carregados de vivacidade, os seios altivos ondeando sobre quadris suaves. Quando Copes a viu foi para cima e, desta vez, ela aceitou. No livro Soy Tango, María Nieves diz que, quando estavam dançando, “ele aproximou sua boca da minha orelha e me sussurrou umas palavras que me fizeram vibrar: ‘Como vamos nos amar’”. Agora encolhe os ombros.
– Muitos lhe diziam frases assim. Era um yeite, um truque da milonga.
– Então você nunca ligou para essa frase.
– Não.
Depois de alguns meses, Copes pediu permissão a Ñata para namorar María Nieves. Um ano mais tarde, dormiram juntos pela primeira vez.
Juan Carlos Copes não só se revelou um bailarino excepcional como também o dono de uma ambição desmedida: numa época em que ninguém imaginava que podia levar o tango dançado para um teatro, ele já tinha intenção de fazê-lo. María Nieves foi uma cúmplice perfeita: tinha talento, beleza e muita devoção por ele. Além de dançar na milonga, começaram a apresentar-se em concursos e competições. Copes convocou outros bailarinos, empenhado em montar um espetáculo na avenida Corrientes, onde estão os teatros mais importantes da cidade. Um dia foi ao Nacional, cujo dono, Carlos A. Petit, era dono também de um cabaré histórico, o Tabarís. Copes lhe falou de seu projeto. Petit se interessou e assim, em 1955, estrearam no Nacional e no Tabarís. Faziam um número de tango entre vedetes e alguns comediantes, e apesar de ganharem apenas para pagar a viagem e ela continuar limpando casas, foi o início de algo que não parou mais.
– Copes começou a dizer: “Não paro enquanto não chegar a Nova York”. Eu, por mim, não teria feito nada. Qual é o sonho de uma mulher? Ter um filho. Ter marido. Estou falando da minha época. Agora é diferente.
– Você não queria viver do tango.
– Não. Não foi uma vocação própria. Meu sonho era ter uma família. E aí deu merda.
Viajaram por Porto Rico, Cuba, México. Em 1959, finalmente, chegaram a Nova York e fizeram, no Waldorf Astoria, um show chamado Evening in Buenos Aires.
– Você quando deixou de trabalhar como…?
– Como empregada? Não sei. Acho que tinha uns 18 anos.
Na parede do corredor que divide os quartos da sala há um espelho ovalado, antigo.
– Que espelho lindo.
– Me riscaram todo ele com a câmera quando vieram filmar.
– Acha que o filme ficou bom?
– Não, uma merda. Eu passei um ano de frio, de madrugadas. Quando terminou o filme disse: “Bom, vou descansar um pouco”. E quando quis voltar a dançar notei uma dor no quadril. Me disseram que tenho as artérias obstruídas e que não se pode fazer nada. Isso me dá uma depressão tremenda. Merrrda, por que não foram as minhas mãos que ficaram cagadas? Em vez das pernas. Por isso não saio. Sair na rua andando como uma velhinha, não. Eu tenho 82 anos, mas não me sinto uma velhinha. Porque, quando o Copes me tirou da companhia de dança, eu disse para mim mesma: “Sou uma velha”. E acreditei nisso.
Em uma cena do filme de Kral, enquanto fala sobre Copes, ela para e diz ao diretor: “Não tenho por que falar disso. Já te disse que não quero falar mais (…). Não falo mais. E não falo mais. E você já me fez dizer o nome dele”. Fica em silêncio, como uma onda brutal que retrocede para tomar impulso: “Copes, Copes, Copes! Já estou até aqui de Copes!”. E, como um condor que se lança para destroçar sua presa, grita, com ira mortal: “Quem é Copes, porra!”.
– ELA TINHA que me contar sua história com Juan Carlos – diz, de Munique, Germán Kral, o diretor de Un Tango Más. E em certo momento explodiu e me mandou à merda. Mas nunca disse: “Saiam da minha casa”. Isso é parte do seu profissionalismo. Eu a acho completamente contraditória, e isso é que é fascinante. Eles não se falavam, e dançavam como deuses. Queriam se matar no palco. E desse ódio surgiu uma beleza que transformava a dança em pura arte. Minha sensação é que eles amavam mais o tango que um ao outro. E foi isso que lhes permitiu continuar dançando quando não eram mais um casal.
Na primeira cena do filme, María Nieves e Copes se encontram num palco. Olham-se nos olhos. Ele ergue o braço esquerdo. Ela pousa sua mão na dele. Copes faz um movimento quase imperceptível com a mandíbula, como se mordesse.
Aquela apresentação no Waldorf Astoria teve consequências. Foram convidados para o Arthur Murray Show, um programa da CBS, e isso lhes rendeu um contrato no teatro Chateau Madrid, de Nova York, e uma proposta, em 1961, de se apresentar no New Faces, um programa de televisão que procurava novos talentos, e um convite para o programa de Ed Sullivan. Mas a relação entre eles não era fácil: ele vivia rodeado de mulheres e queria continuar crescendo; ela só queria voltar para Buenos Aires e ficar perto da mãe. Apesar de tudo, em 1965, em Las Vegas, casaram-se. Quando retornaram ao país, compraram uma casa e ela levou a mãe para morar com eles. “Disse a ela: ‘Aqui estão’”, conta Copes em Quién Me Quita Lo Bailado, a biografia escrita por Mariano del Mazo e Adrián D’Amore, “seu bairro, sua casa, sua mãe, sua certidão de casamento. Agora não me enche mais o saco. Eu sigo sozinho”. Saiu em turnê por ano. Ela conheceu José, um homem que vendia roupas em domicílio. Ele queria se casar, ter filhos, mas quando Copes voltou, ela voltou com ele.
– Disse: “A única coisa que sei fazer é dançar tango”. Pensei que se não tivesse Copes não poderia dançar com outro. Burra. Entre um e outro, escolhi o tango. Fiquei com Copes.
Mudaram-se para uma casa em Olivos, uma zona remediada nos subúrbios de Buenos Aires. Apesar de dançarem juntos e dividirem o mesmo teto (ela e sua mãe viviam no andar de baixo, ele no de cima), brigavam por tudo: por uma mulher, por um passo de dança. Foram contratados pelo Caño 14, um clube noturno frequentado por empresários e políticos onde se montava um espetáculo com o melhor do tango de então: Osvaldo Pugliese, o Polaco Goyeneche. Dançavam também em lugares como o Karim, onde mulheres de categoria cobravam por bebidas refinadas, e por todo o resto. Fora do palco não se falavam, mas sobre ele transformavam a ira em precisão, o rancor em virtuosismo. Em 1971 começaram a trabalhar no Karina, outra casa noturna. Em 1972, uma moça de 18 anos chamada Myriam Albuernez foi ver o espetáculo. Copes a viu e ficou vidrado. Seguiu-se um romance sem muitos planos, e ele decidiu deixar a casa que compartilhava com María Nieves e se mudar para um apartamento no centro. Anos depois, Myriam ficou grávida, e em 1976 nasceu a primeira filha de ambos, Geraldine. María Nieves diz que, durante todo esse tempo, não soube da relação.
– Soube da filha porque alguém me disse: “María, sabia que fulana…”. Também superei isso. Foi o orgulho que sofreu.
– Mas vocês não eram mais um casal.
– Eu não o amava mais. E comecei a viver a vida que não vivi quando moça. Não poupei ninguém. Entrava na milonga e era a rainha. Mas chega. Não quero contar isso. Não. Estamos falando da minha história de amor. Não falo mais.
– Continuaram dançando juntos.
– Eu te diria que foi nosso melhor momento.
Nos anos oitenta, o diretor Claudio Segovia montou um espetáculo chamado Tango Argentino. Além de músicos e cantores, convocou as melhores duplas de tango dançado, entre as quais estavam María Nieves e Juan Carlos Copes. O espetáculo deu ao tango, desde sua estreia em 10 de novembro de 1983, no teatro Châtelet de Paris, uma relevância internacional que jamais havia alcançado. Em 1984 desembarcaram no City Center, em Nova York, e em 1985 migraram para o teatro Mark Hellinger, da Broadway. Haviam planejado ficar cinco semanas, mas passaram seis meses em cartaz. No final do ano, o New York Times destacou Copes e María Nieves como os melhores na categoria Dança, e ele esteve perto de ganhar um Prêmio Tony, mas perdeu para Bob Fosse. Em 1986, os dois foram convidados a dançar para Ronald Reagan na Casa Branca, e a filha de Gene Kelly foi vê-los durante uma apresentação em Los Angeles para levá-los à casa do seu pai, que queria conhecê-los.
– Pedimos a ele para tirar uma foto conosco, mas não aceitou. Deu-nos uma foto autografada. Acho ótimo. Como se você agora me dissesse que quer tirar uma foto minha, e eu dissesse que não.
Em 1987, por desavenças com o elenco, deixaram Tango Argentino e retornaram ao seu país. Continuaram dançando em casas noturnas e teatros, com épocas boas e más. Em 1993, a mãe de María Nieves morreu, aos 92 anos.
– Morreu antes de tudo o que aconteceu depois. Por sorte. Assim não viu nada.
Em 1996, ela e Copes excursionaram pelo Japão, e os organizadores de uma das apresentações lhes pediram que, ao final, eles dissessem algumas palavras. Dançaram e, depois, se aproximaram do microfone. Enquanto ele secava o suor da testa com um lenço, ela disse: “A dança do tango tem algo muito especial, que é a comunicação no casal. Por isso ao dançá-lo sentimos um sem-fim de emoções. Que pode ser o amor, mas também o ódio”. No vídeo que registra esse momento, observa-se que, quando ela diz “mas também o ódio”, Copes a olha, quase surpreso.
– Mas não disse isso com rancor. E saí caminhando. Essa caminhada minha…
Levanta-se e percorre a sala, as pernas como duas onças que sabem o que devem fazer.
– Sou felina, viu? Mas isso é porque você sente o aplauso do público e começa a caminhar, e olha para o homem e é uma sensação que te transporta. Aí eu já não sou mais a María Nieves. Sou outra coisa. Colocam o que for na minha frente e eu engulo. O tango é como um ato de amor. Porque você começa caminhando, fazendo firuletitos com as pernas do homem, e terminam com os ganchos, menina, que é uma trepada.
Antes daquela turnê pelo Japão, Myriam Albuernez havia dado um ultimato ao seu marido: “Eu disse ao Juan: ‘Acho que a etapa com Nieves terminou”, conta Albuernez no filme de Kral. “Pense bem. Se vocês voltarem para casa, não existe mais Nieves como parceira de dança. Se você continuar dançando com Nieves, nem volte para casa'. E ele voltou para casa.” Assim, certo dia, em 1996, María Nieves recebeu a visita do diretor Manuel González Gil, que lhe comunicou que estava preparando com Copes um espetáculo chamado Entre Borges y Piazzolla. E que ela não estava no elenco.
–Senti que me cravavam uma adaga no coração. Que merda, por que ele não me mandou embora antes, quando eu tinha 50 anos. Mas eu tinha 62. E achei que o tango tinha acabado para mim.
–O que você fez?
– Nada. Fiquei em casa.
Foram quase dois anos de isolamento, de não saber o que fazer. Até que, em 1998, Luis Pereyra, um bailarino que havia integrado a companhia de Copes, lhe ofereceu uma vaga no elenco de Tango, La Danza del Fuego. No dia da estreia, entrou no palco temerosa. Mas, antes que pudesse dar um passo, a plateia explodiu em ovação. Pensou, incrédula: “Será que estão me aplaudindo por pena?”
–É que eu sempre achei que ele era o importante da dupla. Nunca tinham me aplaudido desse jeito.
Em 1999, Claudio Segovia reestreou Tango Argentino na Broadway e a convocou para, novamente, dançar com Copes. Ela aceitou por dinheiro, segundo diz. Passaram 10 semanas dançando como duas espadas, sem trocar uma palavra.
– Dancei com raiva. Mas sou uma profissional.
Em 2001, foi convidada a participar de uma versão de Tanguera, com a bailarina Mora Godoy, e voltou a fazer turnês pela Europa, Ásia e Estados Unidos. Aos 65, aos 79 anos, María Nieves dançava com colegas que eram décadas mais novos – Pancho Martinez Pey, Junior Cervila –, recebia homenagens, arrancava verdadeiras ovações, oferecia-se ao frenesi de um público que não tinha imaginado. Então, mais uma vez, tudo acabou.
– Porque se formaram coágulos nas minhas artérias.
– Qual foi a última vez que viu Copes?
– No dia que o filme terminou. O diretor queira que dançássemos, mas eu lhe disse: “Não, com o Copes eu não dança mais!”.
– Gostou de vê-lo ali?
– Não, nem um pouco.
– Nunca pensou em ter filhos com ele, em...
– Sem comentários. Sem comentários. Bem, já estou ficando cansada, menina. Não gosto de falar. Fico irritada. Porque não quero mais falar sobre a minha vida. Fico irritada porque, por dentro, eu me pergunto: “por que você aceitou isso?”.
À porta, na rua, despedindo-se, ela sorri e diz:
– Obrigada. E não diga a ninguém onde eu moro.
– Alô, María?
– Quem fala?
– A jornalista. Queria combinar com a senhora para a fotógrafa ir à sua casa para fazer reproduções das fotos do seu álbum.
Inicialmente, ela diz que nesta semana não poderia, depois que poderia ser na quinta-feira, depois que não pode na quinta-feira de manhã, depois que sim, pode.
– Já avisei a ela que a senhora não quer fazer fotos de agora.
– Eu? Não! Nada de fotografias! Que tivessem se lembrado antes! Sabe por que querem fazer fotos de mim agora? Para dizer: “Veja só a velha”. Que tivessem se lembrado antes!
Na quinta-feira, às duas da tarde, María Nieves atravessa o hall de seu edifício vestida com uma blusa florida com os ombros e o pescoço à mostra.
– Olá, menina. Entre.
– A casa está do mesmo jeito que duas semanas antes: impecável, quase no escuro, com o rádio ligado.
– A fotógrafa veio esta manhã.
– Sim. Ela me contou que a senhora a deixou fazer uns retratos.
– Sabe o que acontece? Eu tinha em mente que não iam fazer fotos minhas. Mas depois pensei: “Porra, você parece uma amadora”. Eu tinha de ter cuidado de toda a minha vida artística como pretendo cuidar agora. Mas agora já não vale a pena.
Vai até a cozinha e esquenta a espiriteira para o mate. Ao voltar, diz:
– Você sabe que eu queria adotar um cachorro? Mas não querem me dar nenhum, porque estou velha, e temem que ele acabe sozinho. Me sinto bem com a minha idade. E sempre digo: “Se vivesse tudo de novo, faria a mesma coisa”. A miséria. Tudo, Menos Copes.
– Mas o que a senhora ganhou com a miséria?
– Felicidade. Nascemos na miséria, e ela uma coisa normal para nós. Graças a Deus, aprendi com minha mãe a não ser mentirosa, a não ter inveja e a saber perdoar.
– Ela conseguiu perdoar seu pai?
– Certamente. Se não, não teria chorado.
– E a senhora?
– Não. Nunca.
– E a Juan?
– Ah, sim. Eu perdoei Juan. Gostaria de ser amiga dele. Eu era empregada, e poderia ter continuado como empregada, mas o tango me deu muita coisa. Sempre digo às dançarinas mais jovens que, se querem ter um filho, não devem deixar o tempo passar. O tango pode esperar.
– Teria trocado o tango por uma família, por...?
– Sim. Sem dúvida. Sim, sim.
Subitamente, ela se cala. Exibe uma expressão temível, o rosto de uma pessoa que se lança sobre o que lhe pesa mais fundo para pôr um fim a isso.
– Está desligado? –pergunta olhando para o gravador.
– Não.
– Desligue-o.
– Por que?
– Porque vou lhe contar um segredo.
A tarde se aproxima do fim quando ela me acompanha até a porta e, com um sorriso humilde, diz:
– Obrigada por se interessar por mim, menina.
Por Leila Guerriero
Jornalista com textos publicados em vários jornais da América Latina e da Europa. É colunista do EL PAÍS e autoria dos livros ‘Los suicidas del mundo’, ‘Frutos extraños’, ‘Plano americano’, ‘Uma historia sencilla’ e ‘Zona de obras’. Em 2010, sua obra ‘El rastro en los huesos’ recebeu o prêmio Cemex-FNPI.
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