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O “tango alegre” e inédito de Borges vira livro

Depois de 14 anos de idas e vindas, finalmente se publicam as conferências feitas pelo escritor em Buenos Aires em 1965 sobre as origens do célebre ritmo argentino

Carlos E. Cué
Jorge Luis Borges em foto de 1979, em Paris.
Jorge Luis Borges em foto de 1979, em Paris.Getty Images

O tango não é triste, tampouco popular nem suburbano. Ou, pelo menos, não nasceu assim. “O tango surgiu da milonga, e era, no início, vigoroso e feliz. Aos poucos ele foi se enlanguescendo e se entristecendo”. Quem diz isso é uma pessoa que tem a autoridade de ter nascido quase ao mesmo tempo que o tango: Jorge Luis Borges. Por mais improvável que possa parecer, o escritor argentino, nascido há 117 anos e morto há 30, ainda tem obras inéditas. Acaba de sair na Espanha El tango, quatro conferencias [O tango: quatro conferências], em que Borges traça o percurso da história de um ritmo que o mundo inteiro identifica com o seu país.

A gênese dessa obra daria um conto, gênero em que o autor era especialista: Borges proferiu algumas conferências sobre o tango em 1965, em Buenos Aires, as quais constituem quase que um tratado misturando erudição, sabedoria popular e humor, para falar não só sobre essa música, mas também, acima de tudo, sobre a sua cidade, sobre a Argentina, sobre a vida daqueles guapos [machões], valentões, que protagonizam as letras dos tangos.

Essa sabedoria, desfrutada apenas pelos que puderam estar presentes aos encontros, teria se perdido, não fosse o fato de que alguém resolveu gravá-los, e, quase 50 anos mais tarde, as fitas acabaram por chegar, por vias rocambolescas, ao escritor Bernardo Atxaga, que as organizou e as doou para que, 16 anos depois de ouvi-las pela primeira vez, se transformassem em um belo livro.

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Ao lê-lo, é possível imaginar um Borges brincalhão que se animava até mesmo a cantar em tom másculo para os presentes a fim de desafiar Gardel, a quem acusava de ter distorcido o espírito do tango (leia mais aqui, em espanhol). “O tango não é triste, melancólico, nostálgico, choramingas. O tango é alegre”, protesta. “Gardel pegou a letra do tango e o transformou em uma cena dramática breve, em que um homem abandonado por uma mulher se lamenta, em que se fala da decadência física de uma mulher”, diz ele, irritado. Borges também rechaça a tese de que foram os imigrantes italianos que transformaram o tanguo em algo choroso. “Não posso admitir essa teoria racista de que o tango era brioso, por ser crioulo, e depois virou triste no bairro italiano da Boca”.

“Borges gostava dos tangos da velha guarda, que ele tinha escutado na infância, porque não eram patéticos. Tinham letras alegres, brincalhonas. Ele achava que Gardel tinha acabado com o tango”, diz Maria Kodama, viúva do autor, que continua a cuidar de sua obra, embora desconhecesse a existência dessas conferências até que Atxaga as encaminhou para César Antonio Molina e este as compartilhou com ela para confirmar sua autenticidade.

Kodama afirma que o escritor não escutava muito tango, mas que tinha fascinação pela história desse ritmo, que marcou a sua infância. Borges nasceu em 1899; em suas conferências, aponta o ano de 1880 como aquele em que a nova música foi criada.

Abordar Borges com ideias preconcebidas pode ser algo perigoso. O mais provável é que ele as desmentirá, levando o leitor a se sentir um ignorante. Fará isso de forma sutil e com senso de humor, mas com efeitos demolidores. O mesmo acontece no caso do tango. Essa música não só não era triste nem popular, como também não surgiu nos bairros mais pobres, mas sim nos prostíbulos, nos “inferninhos”, onde havia alguns “sujeitinhos” de origem humilde, mas também “jovens de bem” que procuravam por diversão. “Os primeiros tangos eram tocados com piano, flauta e violino. Só depois é que se adicionou o bandoneon, de origem alemã. Se o tango fosse marginal, popular, o instrumento usado teria sido o instrumento tipicamente popular: o violão”, afirma.

Isso explica, segundo o escritor, por que, no começo, ele só era dançado entre homens. “No começo do século, criança, eu vi duplas de homens dançando o tango, digamos, o açougueiro, o carroceiro, um ou outro às vezes trazendo um cravo na orelha, dançando tango ao ritmo da sanfoninha. Porque as mulheres sabiam da origem canastrona do tango e não queriam dançar aquilo”.

O tango era uma coisa clandestina, oculta. Até chegar a Paris, a cidade para a qual sempre se voltavam os olhos de Buenos Aires. “Ao contrário do que diz essa espécie de romance sentimental difundido pelos filmes, o povo não inventou o tango, não impôs o tango às pessoas de bem. Ao contrário. E rapidamente os rapazes de bem, provocadores, que eram de portar armas, ou de boa briga, pois foram os primeiros boxeadores do país, o levaram a Paris. E quando a dança foi aprovada e passou a ser vista como algo decente em Paris, aí sim o Bairro Norte, digamos, a impôs a Buenos Aires”, conta Borges.

Mas o tango é, acima de tudo, um pretexto para falar de uma Argentina desaparecida e contar casos que explicam mais coisa do que os próprios livros de história. Casos sobre a vida daqueles guapos que matam e morrem só para preservar a sua fama de valentões, obrigando-se a aceitar todo e qualquer duelo. E de um país que crescia e assombrava a mundo. E, depois, em 1965, a melancolia da oportunidade perdida que ainda toma conta de tudo na Argentina.

É a condenação da alma argentina, que vive lamentando aquilo que poderia ter sido, mas não foi, confortando-se com a ideia de que está fadada a um êxito que nunca chega. Borges fala de 1910, o momento da expansão internacional do tango, e diz que, então, Buenos Aires “era a capital de um país ascendente, onde a pobreza era uma questão, no máximo, de uma geração”. Em 1965, evidencia-se a sua nostalgia, quando Borges fala “desse país que fomos até há pouco tempo”. Passados 50 anos, a discussão é semelhante. Por isso é que Borges aconselha a se buscar refúgio na música. “O tango nos oferece um passado imaginário, todos nós sentimos, de uma forma mágica, que morremos brigando numa esquina qualquer de um subúrbio”.

“Carancanfunca”, a prova de que era um texto inédito

Bernardo Atxaga se sente leve depois do longo périplo que acabou se concluindo em um livro. “Já estava na hora de ser publicado. Não sou nem um pouco fetichista, tampouco um bom pesquisador, mas tinha a sensação de ter descoberto algo inédito de Borges”, conta ele. Desde 2002, quando o ator Jose Manuel Goikoetxea, Goiko, um amigo seu, lhe mostrou as fitas quase inaudíveis, as conferências escaparam do esquecimento apenas por um milagre.

Uma palavra foi essencial em todo o processo: “carancanfunca”. Ela aparece no tango antigo El Choclo [a espiga de milho], um dos que Borges tanto apreciava. E a sua menção em uma das conferências. “Essa palavra me chamou muito a atenção. Quando pesquisei por ela no computador e não apareceu nenhum resultado, vi que estava de posse do único documento existente sobre as conferências”, explica Atxaga. Borges fala sobre essa palavra ao seu modo. “Lembro de ter perguntado a um amigo, Eduardo Avellaneda, o que significava canancanfunca e ele me disse que carancanfunca significava o estado de ânimo de um homem que se sente carancanfunca. Não sei se conhecia o ditado latino segundo o qual aquilo que é definido não deve caber na definição, pois assim tudo pode ser definido, não é? E então ele me disse, muito bom, com vontade de fazer alarde e se gabar”.

Goiko tinha recebido as fitas de um galego que tinha morado na Argentina, Manuel Román Rivas, que as entregou como uma forma de agradecimento por tê-lo acolhido em sua casa em momentos difíceis que havia passado. Para Atxaga não encontrou ninguém que se interessasse por elas, que permaneceram guardadas em uma caixa. Até que, anos depois, em uma conferência em Oxford, ele encontrou Edwin Williamson, biógrafo de Borges. Este confirmou a realização das conferências, cujo conteúdo se dava como perdido. “Quando mandei as fitas para Williamson, ele ficou petrificado”, lembra Atxaga. Isso aconteceu em 2012. Quatros anos depois, finalmente, todos poderão lê-las.

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