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No Chile, mobilização da esquerda deve decidir a eleição presidencial

Com perfil progressista, Guillermo Guillier busca o voto da Frente Ampla e apela até para Pepe Mujica

O candidato Alejandro Guillier (de paletó escuro) encerra sua campanha eleitoral em Santiago, ao lado do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica
O candidato Alejandro Guillier (de paletó escuro) encerra sua campanha eleitoral em Santiago, ao lado do ex-presidente uruguaio Pepe MujicaReuters

Em um país como o Chile, dominado pelo centro político desde que recuperou a democracia, a esquerda mais radical tem relevância quase nula. Mas pela primeira vez ela será decisiva. Caberá a esse grupo definir, neste domingo, o resultado do segundo turno da eleição presidencial, que contrapõe o ex-presidente Sebastián Piñera, um direitista moderado, a Alejandro Guillier, um jornalista e senador de perfil social-democrata. Tudo depende da mobilização do voto esquerdista da Frente Ampla, que obteve 20% no primeiro turno. Se o seu eleitorado comparecer em massa para votar em Guillier e contra Piñera, o progressista terá alguma chance. Do contrário, ganhará o ex-presidente, cujo eleitorado direitista está mais compactado. Guillier recorreu a tudo para estimular esse contingente, incluindo o efeito-surpresa da presença, no comício encerramento da campanha, do uruguaio Pepe Mujica, o personagem mais querido pela esquerda latino-americana na atualidade.

O Chile vive duas realidades paralelas nos últimos dias. De um lado estão a imprensa e o ambiente político e do poder, envolvido como poucas vezes se viu numa batalha com final muito mais incerto do que se previa. Há apenas um mês, imaginava-se que as eleições seriam um passeio para Sebastián Piñera. Mas a decepção do primeiro turno, quando ficou com apenas 36%, bem abaixo dos prognósticos, abriu a possibilidade de uma vitória de Guillier, e o ambiente mudou completamente nesta segunda etapa. O empate técnico nas pesquisas, com ligeira vantagem para Piñera, derivou em uma furiosa batalha midiática na qual parece que o Chile arrisca tudo ou nada neste domingo. Mas, ao mesmo tempo, na outra realidade paralela, está a maioria do país, que decidiu não votar e vive à margem dessa briga. Desde que o voto obrigatório foi eliminado, há seis anos, o Chile tem uma das participações eleitorais mais baixas do mundo, inferior a 50%. E, após várias crises políticas, com escândalos de corrupção e de caixa dois que afetaram todos os partidos, o interesse em votar continua diminuindo.

Por isso, a verdadeira batalha neste domingo consiste em convencer as pessoas a saírem de casa para votar. No primeiro turno, 6,7 milhões de chilenos – apenas 46,7% do eleitorado – exerceram esse direito. A tendência no segundo turno sempre é de aumento da abstenção, porque muita gente não faz questão de ir votar de nariz tampado no que considera ser o menos pior. Guillier só tem alguma chance se a participação não desabar. Além disso, se ganhar precisará dos deputados da Frente Ampla para governar, e por isso o que parecia uma guinada à direita, alinhada com a onda liberal que varre a América do Sul, poderia se transformar em uma curva acentuada à esquerda. Os dirigentes da Frente Ampla pediram o voto em Guillier, mas a conta-gotas, e ele precisa de uma participação maciça desse campo para ganhar. Mujica buscou reforçar esse voto esquerdista no comício de Guillier: “Eu apoio todos os progressistas do mundo, porque passei a vida buscando contribuir para que houvesse um mundo mais igual”.

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Tudo mudou em menos de um mês. Se o primeiro turno parecia um plebiscito sobre a presidenta centro-esquerdista Michelle Bachelet, muito criticada em diversos setores por algumas reformas progressistas, agora tudo se inverteu, e este segundo turno parece um plebiscito sobre Piñera. Guillier conseguirá surpreender se puder mobilizar um voto antidireita semelhante àquele que no Peru, por exemplo, impediu na reta final e por apenas 40.000 votos a vitória de Keiko Fujimori. Não é fácil, porque no Chile o distanciamento em relação à política é muito forte, e porque Piñera é um moderado, e não um personagem tão odiado como Alberto Fujimori, pai de Keiko. Mas a reviravolta foi tão forte que Bachelet, que há um ano estava em baixa nas pesquisas, agora recuperou um apoio de 40%, fala com orgulho das suas reformas e teve uma grande participação nesta fase da campanha – sendo que antes Guillier fugia da sua imagem.

“Com pesquisas pouco rigorosas se conseguiu criar no Chile um estado de opinião de que o Governo de Bachelet carecia de apoio, que o triunfo da direita seria avassalador. Mas o primeiro turno mostrou que há uma maioria de centro-esquerda que deseja mudanças inclusive mais profundas. O problema é articular essa maioria. Se Guillier ganhar, deveria governar sob o modelo português [onde o Partido Comunista permitiu a posse de um Governo de esquerda, mas sem entrar na coalizão], porque a Frente Ampla não vai entrar no Governo”, diz o analista Ernesto Águila, da Faculdade de Filosofia e Humanidades da Universidade do Chile.

“Será uma eleição apertada, vai depender crucialmente da participação”, afirma Harald Beyer, diretor do Centro de Estudos Públicos (CEP) e ex-ministro da Educação no Governo de Piñera. “Se houver uma redução de 700.000 pessoas no segundo turno, com alto grau de certeza Piñera ganhará. Se cair menos que isso, começa a existir uma possibilidade de que Guillier ganhe”. Beyer acredita que Guillier dificilmente obterá todos os votos do enorme espectro que vai da Democracia Cristã à esquerda. “O voto da Frente Ampla parece ser muito mais heterogêneo do que se acredita. Em muitos eleitores há uma desilusão em relação ao Governo de Bachelet, porque ela não foi capaz de abordar uma agenda que reduziria as fragilidades do processo modernizador chileno. Por isso, não é evidente que se mobilizem para votar em Guillier”, resume.

Eugenio Guzmán, sociólogo e diretor da Faculdade de Governo da Universidade do Desenvolvimento, concorda com essa ideia e acredita que Piñera ganhará. “O apelo dos líderes da Frente Ampla por um voto em Guillier foi muito tíbio, durante meses eles disseram que seu inimigo principal era a Nova Maioria [a coalizão de Guillier]. Há uma parte da Frente Ampla que quer abandonar Guillier, como faz o Podemos com o socialismo na Espanha. Guillier fez todos os acenos possíveis à esquerda, incluindo Mujica, mas é mais difícil para ele”, sentencia.

Jorge Baradit, autor de best-sellers como La Historia Secreta de Chile e muito ativo na mobilização contra Piñera nas redes sociais, acredita que a vinda de Mujica a Santiago foi “um golaço” que dará resultado. “A enorme rejeição a Piñera e o apoio quase aos 45 minutos do segundo tempo de Boric e Jackson [principais líderes da Frente Ampla] indica que o voto deveria ir para Guillier”, afirma. Ainda assim, Baradit concorda com os analistas de que haja um percentual de eleitores que no primeiro turno votou na jornalista Beatriz Sánchez, aspirante presidencial da Frente Ampla, mas não nos candidatos parlamentares desse grupo, e ninguém sabe como esse contingente de eleitores vai se comportar. São eles, esse voto protesto de esquerda descontente com o suposto milagre chileno, que decidem as eleições do domingo, porque todo o resto já parece muito definido.

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