_
_
_
_

Kintsugi: a beleza das cicatrizes da vida

O ‘kintsugi’, uma técnica centenária do Japão que consiste em reparar as peças de cerâmica quebradas, transformou-se numa filosofia de vida. Diante de erros e adversidades, é preciso saber se recuperar e superar as cicatrizes

Ilustração de Diego Mir
Marta Rebón

EM UMA ÉPOCA dominada por consumismo e obsolescência programada, o mais provável é que, se um dia você levantar com o pé esquerdo, tropeçar e deixar cair a xícara do café, simplesmente se resignará a juntar os pedaços e a jogá-los no lixo. Algo impensável no Japão. Há cinco séculos, surgiu no Extremo Oriente o kintsugi, uma apreciada técnica artesanal com o objetivo de reparar uma tigela de cerâmica quebrada. Seu proprietário, o xogum Ashikaga Yoshimasa, muito apegado a esse objeto indispensável para a cerimônia do chá, mandou consertá-lo na China, onde se limitaram a fixá-lo com alguns grampos toscos. Insatisfeito com o resultado, o senhor feudal recorreu aos artesãos de seu país, que propuseram finalmente uma solução atrativa e duradoura. Encaixando e unindo os fragmentos com um verniz polvilhado com ouro, eles restauraram a forma original da cerâmica, embora as cicatrizes douradas e visíveis tenham transformado sua essência estética, evocando o desgaste que o tempo provoca sobre as coisas físicas, a mutabilidade da identidade e o valor da imperfeição. Assim, em vez de dissimular as linhas de fissura, as peças tratadas com esse método exibem as feridas de seu passado, adquirindo uma nova vida. Tornam-se únicas e, portanto, ganham beleza e intensidade. Alguns objetos tratados com o método tradicional do kintsugi – também conhecido como “carpintaria de ouro” – inclusive chegaram a ser mais apreciados que antes de quebrar. Desse modo, a técnica se transformou numa potente metáfora da importância da resistência e do amor próprio frente às adversidades.

O ‘kintsugi’ evoca o desgaste que o tempo provoca sobre as coisas físicas, dando valor às nossas imperfeições.

A filosofia vinculada ao kintsugi pode se aplicar à nossa vida atual, repleta de ânsias de perfeição. Ao longo do tempo, conhecemos fracassos, desenganos e perdas. Mas pretendemos esconder nossa natureza frágil, que nos faz mais humanos e autênticos, sob a máscara da infalibilidade e do sucesso. Ocultamos os defeitos, embora tenhamos falhas desde que nascemos.

Ilustração de Diego Mir

O jornalista alemão Adam Soboczynski diz no livro El Arte de No Decir la Verdad (a arte de não dizer a verdade) que aprendemos a camuflar “com grande esforço, e mantendo a compostura, inclusive a mais terrível das comoções que nos atingem”.

Somos vulneráveis não apenas do ponto de vista físico, mas também psíquico. Quando as adversidades nos superam, nos sentimos quebrados. Às vezes, é o acaso que nos leva ao ponto de ruptura; em outras, somos nós mesmos, com nossas elevadas expectativas não realizadas e a avidez do novo, que complicamos a nossa vida. O filósofo catalão Josep Maria Esquirol afirma que “a memória e a imaginação são as melhores armas do resistente”. Como animais dotados de criatividade, temos uma poderosa ferramenta na capacidade de conceber alternativas à realidade. Quando sopram ventos ruins, contudo, o que mais nos ajuda a resistir à investida? Segundo a escritora norte-americana Joan Didion, a resposta é o verdadeiro amor próprio. As pessoas com essa qualidade “são duras, têm uma espécie de valentia moral; exibem essa faceta que antes se chamava personalidade”. E alcançar uma vida plena também envolve a capacidade de se livrar das expectativas alheias e deixar para trás a compulsão de agradar.

Não há recomposição nem ressurgimento sem paciência. No kintsugi, o processo de secagem é um fator determinante. A resina demora semanas, ou até meses, para endurecer. É o que garante a coesão e a durabilidade. Entre os cultivadores da paciência, Kafka ocupa um lugar de destaque. Para ele, a capacidade de saber sofrer e tolerar infortúnios era a chave para enfrentar qualquer situação. Um dia, enquanto passeava com um amigo, Kafka lhe deu um conselho: “É preciso deixar-se levar por tudo, entregar-se a tudo, mas conservando a calma e tendo paciência. Só há uma forma de superação, que começa superando-se a si mesmo”. A receita para viver do autor de O Processo é simples, mas nem por isso menos difícil: “Temos que absorver tudo pacientemente em nosso interior, e crescer.”

Saber valorizar o que se rompe em nós traz uma serenidade objetiva. Gostemos de nós como somos: quebrados e novos, únicos, insubstituíveis, em permanente mudança.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_