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Uma vida com narcolepsia, o transtorno sem cura

Por que as vítimas da narcolepsia, um transtorno exaustivo, ainda esperam um remédio?

Craig Povey, que vive com narcolepsia
Craig Povey, que vive com narcolepsiaDaniel Stier / Twenty Twenty

Eu vigiava leões em um dos meus primeiros trabalhos. Há alguns ofícios que não são adequados para alguém com narcolepsia não tratada, e provavelmente este é um deles. Tinha 22 anos e havia acabado de obter a graduação em zoologia estudando os suricatos no deserto de Kalahari, na África do Sul. Trabalhávamos em duplas, um de nós a pé, caminhando com os suricatos, e outro no jipe, observando o horizonte em busca de sinais de perigo pela presença de leões. Muitas vezes acordei com as marcas do volante na minha testa, compreendendo que havia perdido de vista os suricatos e o meu companheiro. Posso contar isso porque ninguém acabou sendo devorado.

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Nem sempre foi assim. Durante meus primeiros 20 anos de vida, mantive uma relação saudável com o sono. Pouco depois de completar 21, no entanto, comecei a sofrer sintomas de narcolepsia, um transtorno raro, embora nem tanto assim, que se acredita afetar uma em cada 2.500 pessoas. Se sabemos algo sobre a narcolepsia, é que ela provoca frequentes surtos de sonolência incontrolável. Contudo, o transtorno é muito mais incapacitante porque frequentemente é acompanhado de cataplexia (quando uma forte emoção causa perda de força muscular e te faz cair como uma boneca de pano), sonhos alucinatórios, paralisia do sono, alucinações aterrorizantes e, paradoxalmente, sono noturno fracionado. Não há cura. Ainda.

No Kalahari, em 1995, eu desconhecia esses sintomas. Não tinha ideia do quanto afetaria minha mente, meu corpo e meu espírito uma batalha interminável contra o sono (uma batalha em que a derrota era o resultado inevitável). Poucos médicos de família haviam ouvido falar do transtorno, e muito menos conhecido um paciente com eles. Alguns neurologistas sabiam o que procurar, mas muitos, não. Nem mesmo os especialistas do sono sabiam explicar por que de repente este transtorno era desencadeado, com mais frequência a partir dos 15 anos.

Em 20 anos, muita coisa mudou. Agora, há provas esmagadoras de que a causa mais comum da narcolepsia, de longe, é um ataque autoimune no qual o sistema imunológico do corpo interpreta errado uma infecção das vias respiratórias superiores e elimina, equivocadamente, os 30.000 neurônios que se calcula situam-se no centro do cérebro.

A narcolepsia afeta uma em cada 2.500 pessoas e provoca surtos de sonolência incontroláveis

Em um órgão com mais de 100 bilhões de células, essa perda pode parecer pouco preocupante. Mas não são células comuns. Ficam no hipotálamo, uma estrutura pequena, antiga do ponto de vista da evolução e incrivelmente importante, que ajuda a regular muitas das operações básicas do corpo, como a passagem diária da vigília ao sono. As células em questão também são as únicas do cérebro que expressam as orexinas (também conhecidas como hipocretinas). Esses dois peptídeos - cadeias curtas de aminoácidos - relacionados eram completamente desconhecidos em 1995, quando me foi diagnosticada a doença.

A história da sua recente descoberta, que começou na década de 1970, é um interessante relato de casualidade e sorte, imaginação e previsão, risco e rivalidade, e inclui, para começar, uma colônia de cachorros dobermans pinschers narcolépticos. E isso poderia ser até mesmo a perfeita ilustração de como funciona a ciência.

Mas, embora haja remédios que podem ajudar a minimizar o pior dos sintomas da narcolepsia, nenhum deles consegue reparar o dano cerebral subjacente. É incrível que a falta de duas substâncias químicas provoque uma constelação de sintomas tão intrigante. A resposta a meus problemas parece simples: preciso apenas reintroduzir as orexinas (ou algo similar) em meu cérebro. Por que, então, continuo esperando?

Embora haja remédios que podem ajudar a minimizar o pior dos sintomas da narcolepsia, nenhum deles consegue reparar o dano cerebral subjacente

Em abril de 1972, um canil do Canadá teve uma ninhada de quatro cachorros. Em seguida, houve famílias dispostas a adotar os bichinhos, mas um deles, uma fêmea com pelo cinza prateado chamada Monique, desenvolveu o que seus donos descreviam como "surtos de quedas" quando tentava brincar. Não parecia que estava dormindo; eram principalmente paralisias cerebrais; sua patas traseiras eram debilitadas, seu traseiro caía ao chão e os olhos ficavam quietos e vidrados. Em outras ocasiões, quando comia, Monique sofria um ataque agudo.

Quando os veterinários da Universidade de Saskatchewan observaram Monique, suspeitaram que sofria surtos de cataplexia e, em consequência, pensaram que poderia se tratar de um caso de narcolepsia acompanhada de cataplexia. Por pura sorte, o diagnóstico de Monique coincidiu com a chegada de uma peculiar circular de William Dement, especialista do sono da Universidade de Stanford, na Califórnia. Buscava cachorros catalépticos. Os veterinários de Saskatchewan responderam imediatamente. Depois de convencer os donos de Monique a cederem seu animal, tudo que faltava era providenciar o transporte para a Califórnia.

Eu me reuni com Dement, que agora tem 89 anos, para perguntar o que ele lembra desses primeiros momentos. Aposentou-se há vários anos, mas continua vivendo em um bairro cheio de árvores próximo à universidade de Stanford. Seu escritório é uma estrutura grande, como um galpão, anexado à casa principal e não muito diferente de uma cabana de exploradores.

As paredes são forradas de madeira e cobertas por pôsteres emoldurados, fotografias e múltiplas lembranças de uma destacada trajetória na medicina do sono. O escritório de Dement é uma imagem do caos organizado. Em meio a tudo aquilo, há uma pistola de água. Pergunto por quê. "É para quando os alunos dormem na aula", explica, em referência a uma aula incrivelmente popular sobre o sono e os sonhos que ele mesmo iniciou no começo da década de 1970.

Miles Bryant também sofre com este transtorno
Miles Bryant também sofre com este transtornoDaniel Stier

Em 1973, Dement entrou em contato com a Western Airlines para descobrir se poderia transferir Monique de Saskatchewan para São Francisco. Havia uma rígida política de "não admissão de cachorros doentes". "Não é uma cadela doente. É uma cadela com anomalia cerebral", disse. "É um modelo animal para uma doença importante". No fim, com certa pressão política, conseguiu convencer a companhia aérea a ajudá-lo. Uma vez em São Francisco, Monique tornou-se rapidamente uma espécie de celebridade.

"Monique tem muitas probabilidades de colapsar quando come algo que gosta especialmente, ou cheira uma nova flor no campo, ou corre", comentava o companheiro de Dement, Merrill Mitler, à agência Associated Press, para um artigo publicado em dezenas de periódicos americanos. "Esperamos descobrir com exatidão em que parte do cérebro está a disfunção que provoca a narcolepsia", havia dito Mitler aos jornais, pouco depois da chegada de Monique a Stanford. "Pode ser o primeiro passo para o desenvolvimento de um remédio".

O fato de a narcolepsia parecer mais comum em algumas raças indicava que a doença poderia ter uma base genética

Mitler, atualmente, é perito forense em Washington DC, especializado em litígios derivados de acidentes relacionados à fadiga. Pergunto se a história da descoberta da narcolepsia é tão boa quanto parece. "Em uma palavra, sim", responde. "Na década de 1970, não sabíamos o que precisávamos saber sobre a narcolepsia". Simplesmente não havia maneira de prever o que se produziria da pesquisa com Monique e outros cachorros. Nesta fase, admite, o plano era simplesmente usar os animais para fazer autopsias e ver se havia mudanças físicas evidentes nos seus cérebros.

A notícia começou a ser difundida e rapidamente Dement e Mitler estavam cuidando de Monique e de vários outros cachorros narcolépticos, entre eles um filhote de chihuahua e terrier, um griffon de aponte de pelo duro, um malamute do Alasca, vários labradores retriever e dobermans pinschers. O fato de a narcolepsia parecer mais comum em algumas raças indicava que a doença poderia ter uma base genética. Foi produzido um grande avanço: uma ninhada com sete cachorros dobermans, todos com narcolepsia e cataplexia. "Em 24 horas ou menos, vimos como todos eles entraram em colapso, do primeiro ao último da ninhada", diz Mitler. "Estávamos juntos, um bom grupo de Stanford, todos deitados no chão, assistindo".

Nos labradores e nos dobermans, o transtorno é hereditário. Dement tomou a decisão de se concentrar nos dobermans e, no fim da década de 1970, era o orgulhoso guardião de uma grande colônia e havia estabelecido que a narcolepsia nesta raça era causada pela transmissão de um único gene recessivo. Na década de 1980, os métodos de análise genética haviam avançado o suficiente para buscar o gene defeituoso no caso dos dobermans.

Nunca conseguiram reconstruir a combinação de fatores que conduziu à aparição da minha própria narcolepsia, mas o cenário foi estabelecido no momento da minha concepção, em 1972, aproximadamente na época em que Monique nasceu, em Saskatchewan. Meu eu unicelular herdou uma versão determinada de um gene (conhecido como HLA-DQB1*0602) que faz parte de um conjunto que ajuda o sistema imunológico a distinguir amigos de inimigos. O HLA-DQB1*0602 é muito comum - aproximadamente um quarto dos europeus são portadores de uma cópia -, mas desempenha funções chave em muitos casos de narcolepsia, e está presente em 98% dos pacientes com narcolepsia e cataplexia.

Além dessa base genética, a época do ano talvez também possa influenciar. Os narcolépticos têm uma probabilidade leve, mas significativamente maior, de nascer em março (como eu). Este denominado "efeito nascimento" é observado em outros transtornos autoimunes e provavelmente é explicado pela infecção variável pelas estações do ano em um momento determinado do desenvolvimento. No caso da narcolepsia, parece que as pessoas que nascem em março são um pouquinho mais vulneráveis que as outras.

Embora seja possível que tenham influenciado outras infecções da minha infância, as flutuações hormonais e o estresse emocional, foi no final de 1993 quando provavelmente eu me encontrei com um patogênico chave, talvez um vírus da gripe ou um estreptococos. Foi isso que me levou ao ponto de inflexão autoimune que provocou uma rápida desmontagem do meu sistema orexinérgico. Em resumo, na maioria dos casos, a narcolepsia provavelmente é resultado de uma infeliz combinação de acontecimentos que cria uma tormenta imunológica perfeita.

Aproximadamente por aquela época, o projeto Doberman de Stanford estava prestes a revelar a base genética da narcolepsia nesta ninhada. O homem encarregado de buscar a mutação responsável foi Emmanuel Mignot, que posteriormente sucedeu Dement como diretor do Centro de Ciências e Medicina do Sono de Stanford. Nós nos reunimos em seu escritório na universidade, acompanhados por Watson, um Chihuahua narcoléptico que ele adotou há alguns anos. "É uma raça muito tonta", diz, baixando as orelhas de Watson para impedir que fiquem quentes, deixando-o, em seguida, no chão. "Eu nunca a teria escolhido".

No começo, Watson desconfia de mim, mantém distância e resmunga. Quando me coloco à sua altura, late e se lança contra mim, e depois se afasta, fingindo ser mais feroz do que realmente é. Posso ter empatia com ele, apesar do abismo que separa sua espécie da minha. Sei o que é estar sonolento demais durante o dia. Conheço a cataplexia, o que se sente quando as emoções cortam um circuito neurológico do tronco cerebral e causam um colapso muscular (como acontece na fase de movimento rápido dos olhos, REM, quando a maioria do sono se produz). Eu me pergunto se Watson sofre o terror total da paralisia do sono e as alucinações sobrenaturais que frequentemente me acompanham.

Criar dobermans narcolépticos é mais difícil do que parece porque os afetados tendem a entrar em colapso durante o coito

Enquanto me devolve o olhar, as pálpebras se fecham e se abrem com uma tontura que reconheço. Ele se vira, sobre cuidadosamente em sua cesta e se enrola durante o resto da entrevista.

Na década de 1980, a ideia de localizar o gene da narcolepsia canina era desproporcionalmente ambiciosa. Criar dobermans narcolépticos é mais difícil do que parece porque os afetados tendem a entrar em colapso durante o coito, temporariamente paralisados por um estremecimento cataplético (a chamada "organolepsia", que pode acontecer também em humanos). Deixando de lado esta dificuldade, existia também a tarefa de localizar um gene cuja sequência era desconhecida, em um genoma que era, naquela época, território desconhecido. "Diziam que eu estava louco", conta Mignot. Em certo sentido, tinham razão, porque ele levou mais de uma década, centenas de cachorros e mais de 1 milhão de reais. E esteve a ponto de não ser o primeiro.

Em janeiro de 1998, depois de mais de uma década de mapeamento minucioso, e quando a equipe de Mignot estava se aproximando do gene, um jovem neurocientista chamado Luis de Lecea, trabalhador do Instituto de Investigação Scripps de San Diego, e seus companheiros publicaram um artigo em que descreviam dois novos peptídeos cerebrais. Chamaram-nos de "hipocretinas": elisão do hipotálamo (o lugar onde foram encontrados) e secretina (hormônio intestinal de estrutura similar). Pareciam ser mensageiros químicos que atuavam exclusivamente dentro do cérebro.

As hipcocretinas são neurotransmissores importantes para modular o sono e abre o caminho a novos enfoques terapêuticos para os pacientes narcolépticos

Poucas semanas depois, Masashi Yanagisawa e sua equipe da Universidade do Texas descreveram, separadamente, exatamente os mesmos dois peptídeos, embora os tenham chamado de "orexinas" e acrescentaram a estrutura dos seus receptores. Consideravam que a interação dessas proteínas com seus receptores poderia estar relacionada com a regulação da conduta alimentar. "Nem mesmo pensamos no sono", admite Yanagisawa, agora diretor do Instituto Internacional de Medicina Integral do Sono na Universidade de Tsukuba, no Japão.

Em Stanford, Mignot ouviu falar dos dois artigos, mas não havia razão alguma para imaginar que essa nova trajetória tivesse algo a ver com a narcolepsia ou com o sono. No entanto, na primavera de 1999, ele e sua equipe haviam descoberto dois genes nos quais a mutação recessiva poderia ser localizada. Um se expressava no prepúcio. "Não parecia um candidato para a narcolepsia", afirma Mignot. Logo, a apostava estava no outro gene, que codificava um dos receptores de orexina. Quando chegaram notícias de que Yanagisawa havia projetado camundongos desprovidos de orexinas que dormiam de forma característica da narcolepsia, começou a corrida.

Ao fim de poucas semanas, Mignot e sua equipe haviam enviado à revista Cell um artigo que revelava um defeito no gene que codifica um dos receptores de orexinas. "Este resultado determina que as hipcocretinas [orexinas] são neurotransmissores importantes para modular o sono e abre o caminho a novos enfoques terapêuticos para os pacientes narcolépticos", escreviam. Kahlua - um dos cachorros da ninhada de dobermans, todos com nomes de bebidas alcoólicas - aparecia esparramado na capa da edição. Yanagisawa e seus colaboradores acrescentaram suas provas experimentais à mistura apenas duas semanas depois, também na Cell.

Em circunstâncias normais, um mensageiro químico e seu receptor funcionam como uma chave e uma fechadura. Uma chave (o mensageiro) encaixa em uma fechadura (seu receptor) para abrir uma porta (causar uma mudança dentro da célula desejada). No caso dos dobermans de Mignot, uma mutação maciça havia destruído o receptor de orexina, tornando-o inútil.

As orexinas atuam de maneira mais parecida com os hormônios, trabalhando em lugares mais distantes do cérebro

Se forem as fechaduras que não funcionam, como neste caso, ou as chaves, como nos camundongos de Yanagisawa, o resultado é o mesmo. A porta não se abre. O sistema orexinérgico é rompido. Na narcolepsia humana, há muitas formas de romper o sistema orexinérgico. Algumas vezes, um tumor cerebral ou traumatismo craniano bastam para provocar o dano. Na maioria dos casos, no entanto, a narcolepsia é causada pela série de infelizes acontecimentos que já descrevemos em linhas gerais.

Os neurônios orexinérgicos são coisas sérias, e não apenas para quem, como eu, já os perdeu. Presentes nas classes principais dos vertebrados, precisam fazer algo realmente importante. Quando De Lecea descreveu pela primeira vez as orexinas, em 1998, tinha aproximadamente 25 anos e havia acabado de se transferir de Barcelona a San Diego. Em 2006, mudou-se de lá para Stanford para estar mais próximo da ação do campo do sono. "Sinceramente, acreditava que, a esta altura, entenderíamos o tema muito melhor do que entendemos", admite.

Mas descobrimos muitas coisas, especialmente graças à optogenética, uma técnica que De Lecea ajudou a criar. Colocando um vírus, um promotor e um gene encontrado em algas azul-esverdeadas, é possível fazer com que uma determinada população de neurônios seja sensível à luz.

Para ilustrar essa maravilha, De Lecea me mostra um vídeo em seu laptop. Em uma jaula, há um camundongo projetado para que seus neurônios orexinérgicos sejam ativados em resposta à luz. Tem instalado um fino cabo de fibra óptica em seu cérebro. "O rato está dormindo", explica; as ondas de atividade elétrica características do sono profundo movimentam-se em um vídeo na parte superior da tela. O cabo óptico ganha força, um pulso de luz azulada pisca exatamente durante dez segundos. Os neurônios orexinérgicos sensíveis à luz liberam seus neuropepitídeos e, de repente, o rato acorda. Quando a luz se apaga, dorme com a mesma rapidez com que despertou.

Lucy Tonge, durante um de seus surtos
Lucy Tonge, durante um de seus surtosDaniel Stier

Poucas ilustrações do poder das orexinas podem ser mais assombrosas do que esta. De maneira completamente inesperada, sinto meus olhos enchendo-se de lágrimas e, durante uma fração de segundo, quase invejo o camundongo.

Mediante técnicas de optogenética e de outros tipos, De Lecea conseguiu demonstrar que as orexinas têm um efeito potente em muitas redes neurológicas importantes. Em alguns ambientes, atuam como neurotransmissores, cruzando lacunas em neurônios para ativar os neurônios escolhidos, que liberam uma substância chamada norepinefrina por todo o córtex cerebral.

Em outras situações, as orexinas atuam de maneira mais parecida com os hormônios, trabalhando em lugares mais distantes do cérebro. Assim é como influenciam outras substâncias químicas cerebrais, como a dopamina (essencial para a elaboração da recompensa, o planejamento e a motivação), a serotonina (fortemente relacionada com o estado de ânimo e envolvida na depressão) e a histamina (um importante sinal de alerta).

"Na maioria das redes neurais, há várias camadas de segurança paralelas", explica De Lecea, de modo que, se algo não funciona adequadamente, outros sistemas podem solucionar o problema. No caso das orexinas, no entanto, parece que há pouco ou nenhum apoio. Por isso, a manipulação desse sistema produz o tipo de resposta nítida com a qual os cientistas podem trabalhar. "É um modelo magnífico para entender as redes neurais, em termos mais gerais", diz.

A perda de apenas algumas dezenas de milhares de células pode causar um transtorno incapacitante e multissintomático como a narcolepsia

O que sabemos das orexinas permite explicar também por que a perda de apenas algumas dezenas de milhares de células pode causar um transtorno incapacitante e multissintomático como a narcolepsia, que influencia na vigília e no sono, na temperatura corporal, no metabolismo, na alimentação, na motivação e no humor. Essas proteínas nos oferecem um conhecimento privilegiado de como o cérebro faz o que faz.

Tudo isso faz com que a história da orexina soe como a típica história da descoberta científica, como a da hélice dupla, a ilustração perfeita de como funciona a ciência. Há um enigma subjacente (a narcolepsia), um relato original (Monique), a previsão (Dement), ambição (Mignot), avanços tecnológicos (genética), um animal fotogênico (os dobermans), uma corrida (com Yanisawa), parece ciência (optogenética) e um propósito ainda maior (o sono e o cérebro).

São elementos como esses que podem transformar os acontecimentos científicos cotidianos em um atraente relato cultural, afirma Stephen Casper, historiador da neurologia na Universidade de Clarkson, em Nova York. "Tem todos os ingredientes de algo que, na minha opinião, os fisiologistas e neurologistas da primeira parte do século XX buscavam e esperavam encontrar, algo que reunisse herança, bioquímica, biofísica, neurologia e psicologia".

Mas há um padrão em pesquisa biomédica de transtornos raros que abrem promissoras vias de investigação que nunca acabam ajudando os próprios pacientes, acrescenta Casper. Há algo faltando ao relato da narcolepsia, afirma: "Uma boa história deveria ter um claro final feliz".

Seguimos esperando esse final feliz. Mesmo que eu tenha em mãos um frasco de orexina-A ou de orexina-B, como vou introduzi-las no meu cérebro? Se forem ingeridas, as enzimas intestinais as destruiriam, quebrando os aminoácidos como contas de um colar. Injetadas via músculo ou veias, parte suficiente delas não penetraria a barreira hematoencefálica. Foram realizados experimentos de administração nasal, com a ideia de que inalar as orexinas poderia ser uma forma de introduzi-las no hipotálamo por meio do nervo olfativo, mas houve pouco investimento nesse método.

Isso não significa que a indústria farmacêutica tenha ignorado as descobertas da via orexinérgica. Não mesmo. Apenas 15 anos depois de Mignot e seus colaboradores publicarem na Cell o artigo que relacionava a orexina à narcolepsia, Merck recebeu a aprovação da FDA, o organismo americano que regula alimentos e remédios, para o suvorexant (ou Belsomra, seu nome comercial), uma pequena molécula capaz de atravessar a barreira hematoencefálica e bloquear os receptores de orexina.

Um remédio que provoca sonolência não era a aplicação que a maior parte dos afetados pela narcolepsia esperavam. Ao impedir que as orexinas se unam aos seus receptores, o Belsomra cria um caso de narcolepsia aguda, mas no qual a neblina, idealmente, começaria a ser levantada pela manhã.

Os soníferos empregados habitualmente para tratar a insônia funcionam, em geral, deprimindo todo o sistema nervoso central, explica Paul Coleman, químico farmacêutico que trabalha nos laboratórios da Merck, em West Point, Filadélfia, e que foi um dos principais criadores do Belsomra. "O interessante do Belsomra é que é muito seletivo no bloqueio da vigília, de modo que não afeta os sistemas que controlam o equilíbrio, a memória e o sistema cognitivo", afirma.

Os soníferos empregados habitualmente para tratar a insônia funcionam, em geral, deprimindo todo o sistema nervoso central

Ao longo de sua vida profissional, Coleman desenvolveu remédios para tratar diferentes infecções, doenças e transtornos, mas o sistema da orexina é o mais destacado. "A narcolepsia nos deu um fio do qual podemos tirar muito conhecimento sobre aspectos dos sistemas que regem a vigília e o sono", afirma.

"A vigília é um processo fundamental para todos, seja para uma pessoa saudável, seja para um paciente que padece de narcolepsia ou insônia. É o mais interessante com que já tive a oportunidade de trabalhar". As aplicações do Belsomra podem ser ainda mais amplas, e ajudar trabalhadores noturnos a dormirem de dia, melhorar o sono dos pacientes com Alzheimer, ajudar a quem sofre de estresse pós-traumático, combater a dependência de drogas e aliviar o transtorno de pânico em seres humanos.

Fico encantado por esses avanços, mas as milhões de pessoas que sofrem com narcolepsia continuam esperando um remédio que possa funcionar no cérebro e ativar o sistema orexinérgico, em vez de silenciá-lo.

Esse é um dos projetos que há tempos está nas mãos de Masahi Yanagisawa, que há 20 anos participou da corrida para relacionar as orexinas à narcolepsia. Mas projetar e sintetizar um composto que atravesse intacto o intestino, que tenha o necessário para passar do sangue ao cérebro, e que alcance a configuração perfeita para ativar um ou os dois receptores de orexina é um "desafio, muito, muito grande", afirma, "significativamente" maior do que encontrar um composto que interfira com o receptor, como faz o Belsomra.

No começo do ano, Yanagisawa e seus colaboradores publicaram dados sobre o composto desse tipo mais potente até então, uma pequena molécula chamada YNT-185. As injeções dessa molécula em ratos narcolépticos melhoram significativamente sua vigília e sua cataplexia, e reduzem a abundância de fases REM, as fases em que mais se sonha (uma das características da narcolepsia). Isso, afirma Yanagisawa, é uma "demonstração de conceito". Embora a afinidade da YNT-185 (a força com a qual se liga ao receptor de orexina) não seja suficiente para obter permissão para testes clínicos, a equipe de Yanagisawa encontrou outros possíveis candidatos. "O melhor é quase 1.000 vezes mais potente que a YNT-185", afirma.

Embora os sintomas da narcolepsia possam variar enormemente de uma pessoa para a outra, a patologia subjacente - ausência de orexinas - é a mesma. "Se este composto funcionar, servirá para todos os pacientes", afirma. "Nesse sentido, é um ensaio clínico relativamente simples em comparação com muitos outros transtornos".

Um caminho ainda mais futurista é o das células-tronco. Sergiu Paşca tem seu escritório ao lado do de Emmanuel Mignot em Stanford e, em 2015, ele e seus colaboradores desenvolveram uma maneira de tornar células-tronco pluripotentes induzidas (obtidas de células epiteliais) e lhes dar uma nova vida em forma de células cerebrais. "Esse sistema pode ser utilizado para derivar várias regiões cerebrais e, como em um Lego, reuni-las para que formem circuitos em uma placa", afirma.

Recentemente, seu laboratório desenvolveu métodos para fazer algo parecido em pessoas com narcolepsia, começando com uma célula cutânea e acabando com um neurônio orexinérgico completamente funcional. Em teoria, deveria ser possível transplantá-lo para o cérebro de pessoas narcolépticas e restaurar parte da função. Isso, no entanto, é algo que deve ser levado a sério. Para começar, não é provável que as células em si sejam exatamente iguais às células orexinérgicas, inserir uma agulha no cérebro não é um exercício livre de riscos, e sempre há a possibilidade de que o sistema imunológico efetue outro ataque às células transplantadas.

Algum dia o conto das orexinas terá um final feliz? A transição da pesquisa básica para a prática clínica é notavelmente difícil e cara, afirma Casper. (O custo do melhor tratamento atual contra a narcolepsia - oxibato de sódio ou Xyrem - é tão grande que nem sempre está disponível para adultos na Inglaterra, apesar de poder transformar a vida de muitas pessoas).

O custo do melhor tratamento atual contra a narcolepsia é tão grande que nem sempre está disponível para adultos na Inglaterra

Há uma percepção ampla de que a narcolepsia é um transtorno raro, com um mercado pequeno, de modo que seria improvável que a pesquisa e o desenvolvimento farmacêutico neste campo consigam uma significativa rentabilidade. Este argumento não leva em conta a probabilidade de que a narcolepsia não esteja diagnosticada em muitas pessoas e que alguém que desenvolva narcolepsia na adolescência e viva até superar os 80 anos necessitará de 25.000 doses ao longo da sua vida.

Talvez seja mais convincente o fato de que a função organizadora que as orexinas desempenham no cérebro dá a entender que o mercado deste remédio pode ir muito além da narcolepsia. Alto que ativasse as orexinas seria útil para qualquer condição em que sonolência excessiva durante o dia seja um problema, para não mencionar as múltiplas situações para as quais talvez influenciem os baixos níveis desses mensageiros, como a obesidade, a depressão, o transtorno do estresse pós-traumático e a demência.

Há, acredito, outra razão para que esta história ainda não tenha chegado ao fim. Durante muito tempo, o sono foi subvalorizado e considerado como uma incômoda distração da vigília. Com esse ponto de vista, a pesquisa na neurociência do sono não parece ser muito prioritária. Nada mais distante da verdade. Agora, temos provas abundantes de que dormir mal pode ter consequências devastadores para a saúde física, mental e psicológica. O sono não é algo secundário. É fundamental, uma grave questão de saúde pública. Investir na pesquisa do sono não afeta apenas alguns pacientes com transtornos demonstráveis. Afeta todos.

Henry Nicholls estudou zoologia em Cambridge e passou um ano vivendo com suricatos em Kalahari, antes de reunir uma das maiores coleções de ejaculados de aves para sua tese de doutorado. Depois, decidiu que era momento de mudar sua trajetória profissional, e em 2003, tornou-se jornalista científico, especializando-se em evolução, conservação e história da ciência. Escreveu quatro livros: 'Lonesome George', 'The Way of the Panda', 'The Galapagos' e 'Sleepyhead'. Vive em Londres com sua mulher e seus dois filhos.

A Profile Books publicará, em março de 2018, um livro de Henry chamado 'Sleepyhead': Neuroscience, Narcolepsy and the search for a good night' [Cabeça sonolenta: a neurociência, a narcolepsia e a busca por uma boa noite].

Este artigo apareceu primeiro no Mosaic e é publicado aqui graças a uma licença Creative Commons.

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