“Insônia é um problema de saúde pública”
Luis de Lecea, descobridor de neurônios que conciliam o sono, fala sobre a importância de dormir bem
O organismo é uma fábrica extremamente complexa em que milhares de ações devem se coordenar a cada segundo. Um dos mecanismos fundamentais para seu funcionamento correto é o que regula quando estamos acordados e quando dormimos, quando devemos nos alimentar, segurança e sexo e quando podemos descansar para que a fábrica fique novamente pronta no dia seguinte para continuar nos mantendo com vida.
Luis de Lecea, um pesquisador espanhol que trabalha na Universidade Stanford (EUA), é um dos cientistas que tentam compreender as bases biológicas do sono. Ao longo de sua carreira, descobriu hormônios como a hipocretina, essencial para nos manter alerta, e identificou os neurônios que preparam o cérebro para conciliar o sono. A partir desses conhecimentos, foi possível criar remédios para ajudar pessoas com insônia muito mais específicos do que os medicamentos atuais, que apagam todo o cérebro e produzem mais efeitos secundários.
“Se é de noite, mas você está estressado, o que o cérebro pensa que é melhor? Dormir ou não? Do ponto de vista do cérebro, se você está estressado, dormir não é uma boa ideia”
Nesta semana, De Lecea participou do curso de verão da Universidade Internacional Menéndez Pelayo (UIMP), em Santander (Espanha), Sono: Neurociência, Saúde e Hábitos Saudáveis. No evento, patrocinado pela Fundação Tatiana Pérez de Guzmán el Bueno, foram feitas perguntas básicas sobre o sono, um fenômeno que ainda é bem desconhecido. Como o cérebro decide que é hora de dormir e acordar? Como nos adaptamos aos ritmos da natureza e qual a importância da luz, do exercício físico e dos horários? Qual o efeito do descanso noturno sobre o bom funcionamento dos diferentes sistemas do organismo? De Lecea falou com Materia sobre a aplicação dos conhecimentos obtidos em seu laboratório à melhora do sono da sociedade.
Pergunta. Há uma definição precisa sobre qual padrão de alerta e descanso é saudável?
Resposta. É uma negociação. De um lado estão os mecanismos que te mantém acordado e te dão vantagens, mas ao mesmo tempo ficar muito acordado quando não é preciso estar pode causar problemas. É o que tentamos decifrar. O cérebro está constantemente tomando decisões sobre o que é mais benéfico ao organismo. Para isso atribui valores a cada resultado e, no caso do sono, muitas vezes há informação conflitiva. Se é de noite, mas você está estressado, o que seu cérebro pensa ser o melhor? Dormir ou não? Do ponto de vista do cérebro, se você está estressado, não é boa ideia dormir. Imagine que você está na selva, um predador está por perto e isso te provoca estresse, obviamente não é uma boa ideia ir dormir.
“Muitos dos problemas de sono da população se resolveriam com uma higiene do sono um pouco mais organizada. Não ir dormir com a televisão ligada, fazer mais exercício, estar mais exposto ao sol durante o dia e mais afastado durante a tarde e de noite”
Estamos nesse processo adaptativo. Quanto estresse podemos aguentar antes de desabar adormecidos e esgotados. Se restringirmos nosso sono de maneira crônica, o que se ressentirá e quanto podemos aguentar assim? O metabolismo é outro fator importante. Se você está faminto, não é uma boa ideia ir dormir porque pode cair em hipoglicemia. Que parte do cérebro e quais mecanismo regulam essa situação conflitiva de regular o metabolismo e regular a quantidade de sono? Existem outros componentes, mais difíceis de se estudar, mas que também analisamos em animais. A interação social, quão disruptiva pode ser no momento de conciliar o sono e que mecanismos cerebrais existem para conciliar as duas partes. Se existe uma propriedade emergente em um grupo animal para que todos durmam ao mesmo tempo e se há um indivíduo que está perturbando os demais para não ir dormir. São elementos que teriam tradução muito clara em nossa sociedade. Nós ficamos muito acordados porque perturbarmos uns aos outros.
P. Em seu laboratório foram descobertos alguns hormônios e alguns neurônios relacionados ao sono. Esse conhecimento pode ser utilizado para a criação de remédios e utilizá-los para poder escolher quando dormir e quando ficar acordado? Essa pretensão pode ser perigosa?
R. Certamente é possível. De fato, nosso grupo descobriu várias moléculas e o resultado serviu ao desenvolvimento de fármacos, alguns deles já aprovados e receitados nos EUA para insônia. Tenho certeza de que no futuro a combinação de vários fármacos, adaptados à pessoa, permitirão uma intervenção farmacológica mais precisa no sono. Mas isso é desejável? Não tenho muita certeza. Muitos dos problemas de sono da população se resolveriam com uma higiene do sono mais organizada. Não ir dormir com a televisão ligada, reservar um período de tempo para adormecer, fazer do dia, dia e da noite, noite. Fazer mais exercício, estar mais exposto ao sol durante o dia mais afastado da luminosidade de tarde e de noite. Infelizmente, muita gente não segue essas regras tão elementares e por isso a insônia é tão preponderante.
“O ritmo de dormir oito horas não é necessariamente ruim, mas precisam ser oito horas de verdade, não podem ser oito horas interrompidas e pouco eficientes. E, além disso, está comprovado que a luz artificial influencia muito nos padrões de sono”
P. Na imprensa se popularizou a ideia de que é mais natural dormir em duas vezes do que oito horas de uma vez. Tem alguma base científica?
R. De fato não há demonstração de que o melhor seja um ou outro. Seriam necessários estudos mais sérios. Existem relatos de estudos de populações isoladas no Amazonas, que não têm luz elétrica. Nessas sociedades, as pessoas dormem seis horas e depois fazem uma pausa, uma espécie de soneca, mas nem sempre. Acho que podemos nos adaptar a um ritmo de quatro mais quatro e a um ritmo de oito. O ritmo de oito não é necessariamente ruim, mas precisam ser oito de verdade, não podem ser oito interrompidas e pouco eficientes. E, além disso, está comprovado que a luz artificial influencia muito nos padrões de sono. Há uma fase preparatória que leva ao sono em que deveríamos estar com a luz baixa e relaxados. A maioria de nossos lares não está preparada para isso. Muita gente dorme vendo televisão, o tablet e com muitos estímulos que não são bons para conciliar o sono. Do ponto de vista da população isso é um problema. É preciso estimular mais a educação sobre quais são os bons hábitos do sono e tentar ajudar as pessoas que têm problemas sérios em conciliar o sono.
P. A insônia está relacionada com uma pior resposta do sistema imunológico, problemas de obesidade, vícios... É considerada um problema de saúde pública?
R. Existem nos EUA agências que a consideram um problema real de saúde pública. Acredito que na Espanha não exista essa sensibilidade, mas o problema existe, é um problema de saúde pública. Individualmente, não é possível afirmar de maneira nenhuma que dormir pouco causará câncer e obesidade, isso não é verdade. Mas para toda a população existem muitos indícios de que é esse o caso. Mas são necessários estudos mais sérios a nível epidemiológico e a nível básico de quais são os mecanismos que causam esses problemas.
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