A esquerda e o dilema da democracia real
A “soberania popular” refere-se sempre a um “povo”, mas o "povo" não é algo sólido, rígido
Qual deveria ser o projeto da esquerda brasileira? Essa parece ser uma das perguntas recorrentes nos círculos intelectuais do país, num cenário em que o bloco progressista tem dificuldades para se articular. Muito do debate cresce em torno da defesa de uma “democracia real”. Embora presente em diversas manifestações que eclodiram pelo mundo a partir de 2011, o termo pode parecer demasiadamente vago. Afinal, o que seria tal “democracia real”? Em geral fala-se do aprofundamento da participação cidadã e dos mecanismos de democracia direta. Por trás dessa posição, está uma crítica à representação política, vista como incompatível com a expressão da “soberania popular”.
Essa discussão traz pontos interessantes, mas também problemáticos. Não tratarei aqui da viabilidade dos mecanismos de participação cidadã, que já têm longa história no Brasil, apesar dos recentes retrocessos. Também não vou discutir se a democracia representativa cria ou não condições mais favoráveis para reflexão e deliberação política. Meu ponto é outro: o apelo à “soberania popular” é um argumento fraco. Suponhamos que seja possível multiplicar a quantidade de plebiscitos e referendos, e que com o avanço e difusão da tecnologia todos possam propor projetos de lei, opinar, discutir e votar iniciativas populares de forma prática. Mesmo nesse caso, a “soberania popular” não se expressaria sem mediação, sem representação.
A tal “soberania popular” refere-se sempre a um “povo”, e é aqui que as dificuldades começam. O “povo” não é jamais algo sólido, rígido, que se expressa diretamente. O “povo” só ganha forma em um discurso, e discursos são necessariamente parciais, contestáveis. E são assim, precisamente porque são representações. No fundo, a possível confusão com essa ideia nasce dos vários sentidos da palavra “representação”. Existe, é claro, representação política como aquela que temos hoje em Brasília: representantes eleitos, que reivindicam falar e legislar em nome do “povo”. Mas representação é uma palavra que também existe no universo da arte: o retrato de Mona Lisa, por exemplo, representa o sorriso misterioso de uma mulher. À primeira vista, podemos achar que esse segundo sentido não tem nada de político. Ocorre que essas duas dimensões caminham juntas.
A diferença é que, no caso do “povo”, não existe original: é a representação que constrói retrospectivamente o objeto que torna “presente”. Isso não significa que, sem um representante eleito, sem um líder, o “povo” não possa existir. É verdade que, em muitos contextos, lideranças carismáticas tiveram um papel central na construção do “povo”. Não é possível pensar a França de hoje sem a figura do general Charles de Gaulle, assim como não se pode entender o “povo” no Brasil e na Argentina ignorando Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón. Mas a identificação política não precisa ser personalista – é até mesmo possível se identificar com uma ideia construída coletivamente. Em todos os contextos, no entanto, o "povo" é uma construção discursiva, uma representação.
É claro que os defensores da “democracia real” não ignoram o caráter construído e contingente de toda identidade popular. No entanto, a mensagem recorrente parece supor que haveria um "povo" concreto, imanente, com identidades claras e definidas, e que o grande problema seria a incapacidade da representação institucional de transmitir esses interesses para os círculos do poder. A verdade é que o problema é de outra ordem. Mesmo que os representantes possam ser vistos como traidores, e ainda que o sistema representativo tenha suas disfuncionalidades, a dita “crise da representação” não passa exclusivamente por aí: ela é antiga e vem do fato de ser impossível se dizer tudo, de qualquer discurso sobre o “povo” estar aberto à contestação.
O teórico político argentino Ernesto Laclau foi um dos que mais pensou como o "povo" pode ser discursivamente construído. Para Laclau, se o “povo” é uma construção discursiva, trata-se de uma construção que nunca está terminada. Ela sempre pode ser desfeita, transformada, e essa transformação ocorre nos momentos de disputa política. Um discurso é hegemônico, segundo Laclau, precisamente quando consegue triunfar nessa disputa e fixar (de maneira provisória) o sentido de palavras como “povo”.
O desafio dos progressistas não poderia se restringir à forma institucional da democracia. Tanto na democracia representativa quanto na democracia direta, o “povo” será sempre uma representação
Assim, o desafio dos progressistas não poderia se restringir à forma institucional da democracia. Tanto na democracia representativa quanto na democracia direta, o “povo” será sempre uma representação, e, portanto, um espaço em constante disputa. O desafio dos progressistas, não importa em qual contexto, seria o de construir um “povo” progressista, de tornar seu discurso hegemônico.
Isso nos leva a outra pergunta, mais importante: qual o conteúdo desse discurso progressista? Essa discussão envolve o debate sobre como mais vale desconstruir identidades do que as sedimentar. No contexto de exclusão em que vivemos, porém, há pouca dúvida de que o papel da esquerda deveria ser a universalização de direitos, a sucessiva inclusão de setores vulneráveis, precarizados, dando voz a eles, construindo e reconstruindo o “povo” de forma a incorporá-los. Uma democracia direta poderia ajudar nesse processo? Talvez, mas não necessariamente.
Sendo bem prático: de que nos vale uma democracia direta se esse tal “povo” escolher proibir o aborto, proibir o casamento gay, ser tolerante com a violência contra a mulher, naturalizar o racismo, se deixar seduzir pelo nacionalismo xenófobo e pelas fantasias do consumismo? Pensando, por exemplo, nas contradições que perpassam as análises sobre as manifestações de junho de 2013, de que nos valeu o “povo” brasileiro ir às ruas se os progressistas perderam a disputa do discurso? O esforço precisa ir além. Sem dúvida, não se pode ter medo da participação do “povo”, mas tampouco se deve colocá-lo num pedestal independentemente de sua configuração. É preciso disputá-lo.
No entanto, a disputa discursiva não é apenas retórica, mas também afetiva. As pessoas se identificam com uma ideia de “povo” porque isso mexe com suas paixões. Esse é um dos motivos da força de lideranças carismáticas: o carisma, a graça do líder popular está associada ao vínculo afetivo privilegiado que ele estabelece com as massas. Porém, com ou sem líderes, nem todo vínculo afetivo é compatível com formas democráticas de sociedade. É possível energizar o “povo” apelando para a criação de bodes expiatórios, de inimigos a serem eliminados. Esse tipo de discurso é muito comum entre alguns setores da direita, que prometem a fantasia de uma nação plenamente reconciliada assim que tirarmos do jogo aqueles que são apresentados como responsáveis pela nossa desgraça. Concorde-se ou não com o desfecho final, foi esse o tom que predominou durante o processo de derrubada de Dilma Rousseff no ano passado. Os ditos progressistas não deveriam, entretanto, replicar essa estratégia com o sinal trocado.
Na política, o conflito e a relação do “nós” contra “eles” são inevitáveis pois nossas representações são sempre parciais. Muito longe de uma pretensa democracia “real”, pura, que promete expressar um “povo” imanente para além da representação, o que existe é o oposto: o espaço comum necessariamente cindido. Mas o antagonista com o qual nos deparamos pode ser tratado de diversas maneiras. Na democracia, o antagonista é um adversário a ser respeitado, não um inimigo a ser abatido. Na democracia, os afetos devem circular baseando-se menos na fantasia de uma sociedade idílica, expurgada de seus elementos nocivos, e mais na aceitação de que nossa experiência comum nunca será harmônica.
Contudo, a forma como os afetos circulam é, ela mesma, fruto de uma construção discursiva e, portanto, da disputa hegemônica. A abertura que caracteriza o cotidiano da democracia não cai do céu. A construção de um “povo” democrático exige que esse “povo” encare a democracia enquanto um horizonte aberto, enquanto um processo que não traz respostas prontas, mas que, exatamente por isso, permite pensar “fora da caixa”. Para que isso seja possível é preciso, em primeiro lugar, aceitar que só temos acesso à nossa realidade através de representações e, em segundo lugar, se identificar com os próprios limites dessas representações. É assim que se incentiva o questionamento constante de nossas práticas sociais e, a partir daí, a incorporação dos excluídos. Os setores vulneráveis, afinal, só encontram voz a partir da desconstrução das representações em vigor e da construção de novos discursos capazes de trazê-los para dentro da esfera pública e da convivência social entre iguais.
Afinal, qual seria o projeto da esquerda, senão essa abertura para novas formas de viver juntos?
Thomás de Barros é economista formado pela Universidade de São Paulo e doutorando em Teoria Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po).
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