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Morre Tom Petty, um dos grandes nomes do rock norte-americano

O intérprete morreu aos 66 anos após sofrer um ataque cardíaco em casa

Tom Petty discursa em cerimônia em Nova York em 2016.
Tom Petty discursa em cerimônia em Nova York em 2016.EDUARDO MUNOZ (REUTERS)
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Se o rock’n’roll, com suas melodias arrasadoras e guitarras alucinadas, sempre foi uma magnífica ilusão de presente infinito, Tom Petty, que morreu nesta segunda-feira aos 66 anos, detinha uma poção indecifrável. Suas canções abrangiam essa promessa eterna de vida instantânea e chegaram a ilustrar como poucas na música popular o sonho perfeito do aqui e agora, esse momento imbatível onde tudo o que é importante acontece sob o feitiço de alguns poucos acordes.

O artista morreu às 20h40 desta segunda (0h40 de terça em Brasília) no hospital da Universidade da Califórnia em Los Angeles, onde fora internado depois de ser achado inconsciente na sua casa, em Santa Monica (Califórnia), vítima de um ataque cardíaco. “Estamos desolados de anunciar a morte prematura do nosso pai, marido, irmão, líder e amigo Tom Petty”, anunciou seu agente, Tony Dimitriades, na conta do artista no Twitter. “Ele morreu em paz, cercado pela família, pelos colegas de banda e pelos amigos”, acrescentou. Petty estava na reta final de uma grande turnê que comemorava seus 40 anos de carreira junto à banda que o acompanhou por toda a vida, a Heartbreakers. Há apenas uma semana, ele se apresentou no lendário auditório Hollywood Bowl, em Los Angeles, e tinha mais dois shows pela frente, nos dias 8 e 9 de novembro, em Nova York.

Há, na vida desse ícone da música norte-americana do último meio século, alguns fatos pouco conhecidos que talvez ajudem a explicar por que Petty – que partiu muito cedo e de surpresa – foi um músico tão magnífico, uma espécie de mago que estirava o presente até limites do impossível, graças a um dom melódico irreproduzível. Por exemplo, que viveu uma infância sob o jugo asfixiante do pai. Nascido em Gainesville, na Flórida, Petty cresceu sob os maus tratos de um pai severo e medíocre, que descontava todas as suas frustrações em seu filho. Nunca entendeu que aquele menino tímido encontrasse refúgio nas canções de Bob Dylan ou Elvis Presley, que dissesse que ouvi-los era como sentir que os marcianos chegassem à Terra com uma mensagem nova. Esse trauma ele supriu com canções. Trancado em seu quarto, o jovem Petty decidiu encontrar a salvação na música. E algo mais importante, como disse mais de uma vez: devolver à música tudo o que esta lhe deu.

Amparado por sua mãe, um pilar fundamental na existência dolorosa do garoto, Petty logo entrou para bandas do colégio, até se profissionalizar, ainda que de forma incipiente, com o Mudcrutch. O grupo era composto também por Bruce Felder, irmão do professor de guitarra de Petty, Don Felder, que mais tarde ingressaria nos Eagles, a maior banda de country do planeta. Com Bruce e outros dois amigos, Mike Campbell e Benmont Tench, o Mudcrutch rapidamente se transformou numa sensação no Estado da Flórida. Com esse rock de toque sulista, impulsionado pela voz de soul branco de Petty, o grupo se tornou muito popular em várias cidades, mas foi um fracasso fonográfico. Gravaram poucas canções e nunca chegaram a lançar um disco.

Diante disso, Petty partiu para Los Angeles, um dos epicentros discográficos dos Estados Unidos, com o objetivo de conseguir gravar um primeiro álbum. Felder ficou pelo caminho, ao contrário de Tench e Campbell, a quem o músico da franja platinada recrutou para seu projeto na Califórnia. Petty disse na época que não entendia sua vida sem a música, nem sabia ter outra linguagem que não passasse pelas canções e, portanto, não queria renunciar a seu sonho. Era a única vida possível para ele. E assim foi. Tom Petty and The Heartbreakers – um nome que surgiu de uma brincadeira numa sessão de gravação – nasceram com essa urgência existencial em suas músicas, como que instigando essas ilusões de viver intensamente o presente. Em 1976, Petty, dono absoluto da banda, escudando-se das desavenças que vivera no Mudcrutch, lançou seu primeiro disco com o grupo, liderado pelo fabuloso guitarrista que é Campbell, um virtuoso das cordas e braço direito de Petty desde então.

Desde esse primeiro álbum, Tom Petty and the Heartbreakers, o grupo caiu nas graças do público norte-americano, e também do britânico – um feito que não estava ao alcance de todos, a começar por Bruce Springsteen, uma referência para essa geração e posteriormente o porta-voz do rock’n’roll dos EUA em todo o planeta. As canções de Petty tinham uma visão melódica absorvente, mas além disso se encaixavam às maravilhas no espírito da nova onda britânica, amparada por The Faces, The Jam, Nick Lowe, Elvis Costello e Graham Parker. Devido a essa busca de contato humano instantâneo, própria do melhor pop de todos os tempos, o rock de Petty guardava um sutil toque punk, propício aos tempos que corriam. Sua fascinante emergência emocional ficou plasmada também em discos como You’re Gonna Get It! (1978), Damn the Torpedos (1979) –talvez sua grande obra-prima – e Hard Promises (1981). Em todos eles, como o melhor Springsteen, Petty radiografava o cidadão médio norte-americano, abalado pelas grandes crises econômicas e de valores – Vietnã, Watergate…– que criaram toda uma legião cinzenta de operários à sombra do sonho americano. As canções de Petty não eram mero escapismo, acelerando o ritmo vital com brutais melodias guitarreiras e oferecendo histórias de fugas na caça de horizontes impossíveis, e que, além do mais, nos melhores casos, adotavam um ponto de vista feminino, como em American Girl, Refugee, Learning to Fly e Mary Jane’s Last Dance, o que lhe permitiu se impregnar profundamente na psique das mulheres, um público que sempre lhe demonstrou sua admiração.

Com essa visão instrumental e poesia lírica tão essencialmente norte-americana, Petty, um autor que na Europa se movia entre os extremos da admiração sem paliativos e o desconhecimento ou indiferença totais por parte da paróquia roqueira, era profeta em sua terra e um músico entre músicos, admirados por contemporâneos e mestres como Dylan, com quem chegou a formar a melhor das bandas imagináveis: os Travelling Willburys. Ele, Dylan, George Harrison, Jeff Lyne e Roy Orbison deram rédea solta a esse brinquedo em forma de grupo e passaram à história por sua qualidade sonora e sua diversão contagiosa, nascidas destes colossos, como um dos melhores presentes musicais do século XX.

Petty punha sua poção a serviço desse grupo – essa poção melódica que, ainda hoje, em pleno século XXI, é impossível decifrar, como a da Coca-Cola. Um segredo sonoro que também desenvolveu magistralmente quando, no final dos anos oitenta, ele decidiu unilateralmente sair em carreira solo e interromper temporariamente a carreira dos Heartbreakers . Jeff Lyne e Mike Campbell – o único de quem não se livrou na sua carreira solo – deram um verniz mais pop para o seu rock. Sua poção voltou a ser um sucesso no delicioso disco Full Moon Fever, em 1989. Depois, com a ajuda de Rick Rubin, procuraria uma mudança sonora mais ancorada nas raízes do folk, no também interessante Wildflowers, em 1994.

Com os Heartbreakers, talvez uma das melhores formações de rock de todos os tempos por sua execução certeira e sem espalhafato, lançou discos notáveis até o final de seus dias, como Echo, The Last Dj e Mojo, com esse blues estradeiro. Também voltou, décadas depois, a reunir o Mudcrutch, chegando a lançar dois álbuns que nunca ninguém esperara.

O adeus de Tom Petty é um duro golpe para a música norte-americana. Neste ano ele comemorava os 40 anos de carreira com os Heartbreakers. Tocando seus clássicos e agradecendo a um público fiel como poucos, pois graças a ele esse rapaz da Flórida, maltratado pelo pai, pôde se dedicar profissionalmente ao seu sonho. Um sonho que em suas canções soava infinito.

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