Coisas que não existiriam sem ‘Blade Runner’
Clássicos do anime, games e edifícios de escritórios integram o legado do filme de Ridley Scott
Assim como a religião masoquista do mercerismo, o mood organ (“órgão dos ânimos”) – aparelhinho capaz de produzir altas doses de entusiasmo e depressão somente apertando um botão – foi um dos muitos detalhes do romance Será Que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, que acabaram perdidos no caminho quando o livro se transformou no clássico Blade Runner (1982), de Ridley Scott. Talvez o cineasta tivesse um protótipo do artefato debaixo da mesa para induzir nos espectadores o entusiasmo generalizado com o que viam na telona. Em plena idade do ouro do blockbuster adolescente, o longa demonstrou que havia espaço para um ambicioso exercício de ficção-científica adulta, capaz de levantar questionamentos existenciais sobre os limites entre o humano e o artificial. Sua síntese de cinema negro e distopia, sua deslumbrante produção, sua atmosfera opiácea e a convergência de Harrison Ford, Sean Young e Rutger Hauer no ápice de seus contrastados poderes de sedução criaram uma alquimia única.
Dick morreu logo antes da estreia de Blade Runner. O filme era mais grave e relevante que o romance – permeado por um excêntrico humor – e bebia em fontes diversas, como a HQ The Long Tomorrow, de Moebius e Dan O’Bannon. Mas sua influência no imaginário de toda a ficção científica posterior foi realmente gigantesca. O filme de Scott incentivou um novo movimento literário, o cyberpunk, cujo ideólogo, William Gibson, sinalizava seu fundacional Neuromante pouco antes da estreia dessa produção, que deixou de ser um fracasso de bilheteria para adquirir status de culto.
“[A obra] afetou a maneira como as pessoas se vestiam, o modo de decorar os lugares noturnos. Os arquitetos começaram a projetar edifícios de escritórios como os do filme”, diria Gibson anos depois, enfeitiçado pelo senso da arqueologia urbana – um futuro heterogêneo, gerado a partir da justaposição de camadas de passado – que Scott propunha.
Afetou a maneira como as pessoas se vestiam, o modo de decorar os lugares noturnos. Os arquitetos começaram a projetar edifícios de escritórios como os do filme
Blade Runner transformou a concepção do espaço urbano no anime –Akira, Ghost in The Shell –, nos games Deus Ex, Perfect Dark – e no cinema fantástico – Cidade das Sombras, Estranhos Prazeres, Minority Report –, rompendo com uma tradição de futuros imaculados regidos pela simplicidade das linhas. A relevância do filme extrapolou a estética para abrir um debate ideológico que parece ser cada vez menos de ficção científica: como gerir a obsolescência do humano quando o artificial conquistar sua consciência? Filmes como Ex Machina, Transcendence: A Revolução e Ela deram continuidade a essa discussão.
Blade Runner alcançou uma dimensão de texto sagrado. Tanto que não será fácil para Denis Villeneuve deixar de incitar alguns fundamentalistas, que talvez ignorem que o romance original já teve três sequências assinadas por Kevin Wayne Jeter, amigo de Philip K. Dick. O que se pôde ver até agora indica um respeito escrupuloso pelo universo original – de fato, o roteirista
Hampton Fancher e Ridley Scott continuam aí para dar o aval. E nos resta confiar que, na hora de escolher entre bálsamo nostálgico e capacidade de inovação, esta última seja escolhida, como preferia o grande Dick.
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