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Novos medos e esperanças: a vida de uma mulher transexual depois de fazer a transição

Antes, Laura sentia medo de ser assaltada; agora, teme também ser estuprada. Mas agora se sente mais livre para decidir com quem quer dividir sua própria história

M.R.
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Transexuais na parada LGBTQ de São Paulo em 2017FERNANDO BIZERRA JR (EFE)
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Laura* tem 28 anos, mas é como se a sua vida estivesse começando agora. Enquanto tomava um café na região da rua Augusta, em São Paulo, contava sobre seu mais recente plano: quer, em breve, deixar o Brasil para trabalhar no exterior. Prefere não ter revelada a sua identidade, assim como sua profissão. “Tenho medo que alguém que eu conheço leia esta reportagem e acabe sabendo quem sou eu”, conta. Laura é uma mulher transexual, que realizou recentemente a cirurgia de redesignação sexual, mais comumente conhecida como mudança de sexo. Até então tinha outros medos. Antes, de ser assaltada. Agora, tem medo de ser estuprada.

Até se operar, ela enfrentava situações que outras mulheres não imaginam. "Coisas simples, como usar um biquíni ou uma calça mais apertada, eram uma questão pra mim". O pênis ficava em evidência. Faz seis meses que Laura viveu uma transição e passou a ter uma vagina. Com as unhas pintadas de cinza, pulseiras coloridas, calça jeans e uma blusinha regata justa, ela às vezes se esconde, tímida, por trás dos longos cabelos, para falar sobre como sua vida está diferente agora.

Ela não realizou a cirurgia pensando somente em como sua vida afetiva ou sexual poderia mudar. Os gastos para realizar a operação na Tailândia foram também um investimento na sua própria segurança. “Eu já quase apanhei na balada”, contou. “Não deixava que os caras me tocassem, com medo que eles percebessem que eu tinha um pênis”.

Para realizar a cirurgia, recorreu aos tios que sempre souberam que ela é uma mulher transexual. Com os pais e irmãos, que moram em outra cidade, Laura pouco fala. Não aceitam a transição. “Eu disse ao meu tio que a operação era também uma questão de segurança, que meus amigos nunca me deixavam sozinha em uma festa por medo de eu apanhar”, conta. Com a ajuda do tio, Laura juntou dinheiro – somente a cirurgia custa cerca de 25.000 reais – e coragem, e embarcou para o país asiático, referência mundial neste tipo de procedimento.

A operação dura cinco horas. Entre explicações técnicas e confissões, as frases de Laura são, muitas vezes, iniciadas com um antes ou um depois de aquilo. Antes e depois da Tailândia. Ela diz que agora se sente mais livre para decidir com quem quer dividir sua própria história. De vez em quando, usa aplicativos de encontro, como o Tinder e o Happn, mas diz não ter "muita paciência" com a paquera virtual. "Já conheci homens na balada, na academia, no shopping e em festas", diz. "Mas nunca conto para eles que sou uma mulher transexual durante as conversas. E nem no primeiro encontro".

Antes da Tailândia, Laura tinha que contar previamente que era uma mulher transexual se quisesse ter relação sexual com alguém. Já não pretende contar para mais ninguém. “Se um homem não quer ficar com alguém porque essa pessoa tem um pênis, eu compreendo”, diz. “Mas se ele não quer ficar porque a pessoa não é cis, eu não entendo”. (Cis é a abreviação de cisgênero: uma pessoa que tem o mesmo gênero que o designado no nascimento). No caso de Laura, ela não se identificava com o gênero masculino, que lhe foi designado quando nasceu. Seu nome, foi ela quem escolheu.

Aos rapazes com quem sai hoje não revela nada sobre a cirurgia. "Mas sempre fico pensando se eles desconfiam", diz. Contou apenas quando decidiu ter sua primeira relação depois da Tailândia. Não deu certo na primeira vez. Ela chorou. Foi acolhida e abraçada. Um tempo depois, o sexo deu certo. E Laura chorou de novo. “Meu sonho era isso”.

“Em uma sociedade machista, a mulher tem sempre que agradar o homem, e no mundo trans, isso é mais forte ainda”

Laura também trocou de RG. Mudou todos os documentos por meio do Centro de Referência da Diversidade, órgão da Prefeitura de São Paulo que presta diversos apoios à comunidade LGBT. Agora, além de mais livre, Laura diz que se sente mais feminista.

As questões de Laura não estão somente no âmbito sexual. Se, por um lado, o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do governo do Estado de São Paulo fornece todo o tratamento hormonal - ela toma hormônios femininos - e atendimento gratuito para ela, por outro, Laura não consegue encontrar um(a) ginecologista. "No ambulatório, os ginecologistas atendem homens transexuais, mas não atendem as mulheres redesignadas [termo correto para se referir às mulheres que realizaram a cirurgia] como eu", diz. Por meio de nota, a Secretaria de Saúde de São Paulo informou que os profissionais do ambulatório estão "aptos para atender pacientes homens e mulheres transexuais, bem como profissionais capacitados para atender mulheres transexuais redesignadas". Laura mudou. Mas o mundo (ainda) não mudou para ela.

*O nome da personagem foi trocado para preservar sua identidade.

Cirurgia é oferecida pelo SUS

No Brasil, a cirurgia de redesignação sexual pode ser feita em clínicas particulares, mas o SUS também realiza este tipo de operação. De acordo com o Ministério da Saúde, desde 2008, quando as cirurgias começaram a ser oferecidas, até maio de 2017, foram realizadas 400 operações, incluindo a mudança de sexo, mastectomia (retirada da mama), tireoplastia (troca do timbre de voz) e plástica mamária reconstrutiva (incluindo próteses de silicone).

Ao todo, nove centros hospitalares estão habilitados para oferecer os procedimentos, que incluem terapia hormonal e acompanhamento dos usuários em consultas no pré e no pós-operatório. São eles: Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG); Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro; Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS de São Paulo; CRE Metropolitano, de Curitiba (PR); Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que pertence à Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP; Hospital das Clínicas de Goiânia, da Universidade Federal de Goiás e o Hospital das Clínicas, da Universidade Federal de Pernambuco.

A idade mínima para realizar procedimentos ambulatoriais - como terapia hormonal e acompanhamento médico - é 18 anos. Já para realizar a cirurgia, é preciso ter mais de 21 anos e um acompanhamento psicológico prévio de dois anos, para que o paciente tenha certeza sobre a decisão, já que o procedimento é irreversível.

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