Miller, de procurador que negociava delações à grande esperança para melar a Lava Jato
Ex-procurador Marcello Miller é suspeito de ajudar o empresário Joesley Batista a preparar a delação
Na manhã de um sábado, 4 de março deste ano, procuradores da república de todo o país receberam um e-mail com uma informação bombástica. Era a despedida do procurador Marcello Miller, principal negociador de acordos de delação premiada perante o Supremo Tribunal Federal nos últimos três anos. Hábil com as palavras, Miller iniciou a mensagem com a lembrança de que há 13 anos teve a “imensa honra” de passar no concurso para procurador da república. “Era minha meta-síntese; era para sempre; ninguém podia estar mais realizado e animado que eu”, afirmou. No entanto, movido por um “espírito inquieto", pela "vontade de fazer coisas diferentes" e pelo "gosto pelo desafio”, mudaria de lado de balcão. Um mês depois, voltaria a entrar na Procuradoria-Geral da República como advogado do empresário Joesley Batista, sócio da JBS. Aos 43 anos, Miller abandonava um salário de cerca de R$ 30 mil por mês para ganhar, no total, R$ 110 mil mensalmente (R$ 1,4 milhão ao ano) como sócio do escritório de advocacia Trench Watanabe. Mas a mudança de lado não trouxe novos ventos somente para Miller – virou a mais nova esperança para criminosos interessados em se livrar da Operação Lava Jato.
No que depender de réus, investigados e seus advogados, todo acordo de delação e suas consequências serão questionados juridicamente depois que surgiram indícios de que Miller ajudou, enquanto procurador, na preparação do acordo de delação da JBS. Provada ou não, a possível interferência de Miller vai ser utilizada por advogados como motivo para evocar a chamada doutrina dos frutos da árvore envenenada, teoria jurídica que considera ilegais todas as provas produzidas a partir de uma iniciativa ilícita. Essa doutrina já conseguiu a anulação por inteiro da Operação Castelo de Areia, que liberou a empreiteira Camargo Corrêa para cometer novos crimes antes de voltar a ser pega pela Operação Lava Jato. Janot já se antecipou ao movimento e disse que, ainda que Miller tenha atuado indevidamente pela JBS, isso não afeta a validade das provas colhidas no acordo, mas, sim, os benefícios concedidos aos delatores.
Miller já era investigado pela Procuradoria da República no Distrito Federal porque não cumpriu a quarentena de três anos antes de virar advogado. Esse é o tempo mínimo imposto pela Constituição a magistrados para que comecem a advogar nos tribunais onde atuaram. Falta regulamentação sobre o assunto no Ministério Público, mas procuradores avaliam que essa mesma exigência era cabível a Miller. Desde segunda-feira, ele também é investigado pela hipótese de que, além de descumprir a quarentena, pode ter auxiliado indevidamente na preparação da delação premiada da JBS. Isso porque foram descobertas novas gravações de Batista em que ele insinua que teve ajuda de Miller para preparar a proposta de delação antes de apresentá-la oficialmente ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot. A legislação proíbe qualquer interferência ou manipulação em delações. Enquanto buscava trunfos para convencer Janot a assinar uma delação premiada, Joesley gravou a Michel Temer em uma conversa comprometedora, onde o presidente da República se incriminou ao assentir supostamente com a compra do silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro.
As novas gravações só foram descobertas no sábado depois que a JBS entregou um último lote de provas na quinta-feira, véspera do prazo final concedido pelo STF para que os delatores da empresa confessassem todos os seus crimes. Nesses áudios, onde Joesley parecia não perceber que o gravador estava ligado, o empresário conversava com outro executivo da JBS e indicava que ficou acertado o pagamento de honorários a Miller quando virasse advogado pela ajuda na delação. Ainda que estivesse embriagado quando falava, os comentários de Joesley ganharam credibilidade, porque Miller, de fato, virou advogado da JBS logo depois de deixar o Ministério Público. Ele não esperou nem uma semana antes de se apresentar na Procuradoria-Geral da República como advogado de Batista – teoricamente como negociador do acordo de leniência da J&F, holding da família Batista.
Como diplomata de 1998 a 2003, Miller conduziu negociações até na Líbia durante a ditadura de Muamar al Kadafi. Esse tipo de habilidade o credenciou a liderar negociações de acordos de delação com criminosos investigados no Supremo Tribunal Federal. Miller tinha sido convidado pessoalmente por Janot para integrar sua equipe de assessores jurídicos na área criminal, e, logo depois, foi integrado ao grupo de trabalho dedicado à Operação Lava Jato na Procuradoria-Geral da República. Acabou virando o principal negociador de acordos famosos e última barreira para delatores. Sem ganhar o aval de Miller à proposta de delação, ninguém conseguia acordo com Janot. Ao mesmo tempo em que se destacava pelo sapateado diplomático, Miller acabou criticado por outros investigadores por interrupções aleatórias de discussões para demonstração de erudição jurídica. Tiveram participação decisiva de Miller os acordos do lobista Fernando Soares, o Baiano, do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró e do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado. Mas sua principal credencial de sucesso na PGR virou a negociação do acordo do ex-senador Delcídio do Amaral. “Ele ganhou pontos quando dobrou o Delcídio”, diz um investigador.
O problema é que, pelas suspeitas surgidas na JBS, advogados revisam toda a atuação de Miller em delações premiadas. O objetivo, por óbvio, é achar brechas judiciais e blindar criminosos pilhados pela Operação Lava Jato. Em depoimento gravado em vídeo, Cerveró falou que recebeu uma “doutrinação” de Miller sobre como seria uma delação premiada. Antes disso, no mesmo depoimento, Cerveró tinha falado que um procurador “orientou” seu filho Bernardo antes de fazer as gravações de conversas com o ex-senador Delcídio do Amaral, que flagraram os pagamentos de propina pelo silêncio do ex-diretor da Petrobras . As confissões de Cerveró foram reveladas pela jornalista Vera Magalhães, em programa na rádio Jovem Pan.
Miller também assinou o acordo de leniência com a Embraer, pelo qual a gigante brasileira admitiu pagamentos de propina em vários países. Mas o acordo tinha uma cláusula polêmica, também presente no acordo da JBS, pela qual o Ministério Público se compromete a somente colaborar com investigações de outros países caso a empresa consiga acordo no país interessado com “efeito exoneratório”, no mínimo, equivalente ao assinado pela Embraer no Brasil. Essa condição dificultou o compartilhamento de informações com outros países, ainda que os crimes tenham sido justamente cometidos no exterior. A barreira só foi superada com a adoção pela Procuradoria-Geral da República da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) para conseguir cooperar com países interessados, de acordo com um procurador especializado no assunto. E Miller acabou por virar funcionário do escritório Trench Watanabe, sob a batuta da advogada Esther Flesch – representantes da Embraer na negociação com Miller.
No Ministério Público Federal, Miller participou da investigação de alguns casos rumorosos antes de virar assessor de Janot. Investigou uma gangue de bicheiros na Operação Black Ops e uma quadrilha de policiais civis ligados ao ex-governador do Rio Anthony Garotinho. Para amigos da força-tarefa da Lava Jato, nunca tinha revelado a vontade de virar advogado. A mudança de lado, logo para o balcão da JBS, surpreendeu a todos. Mas ainda há entre os antigos colegas de Lava Jato quem torça para que Miller seja inocente e que todas as insinuações contra ele não passem de papo de bêbado de Joesley, de pura fanfarra. E, pelas evidências colhidas até agora, é possível que Miller seja, de fato, inocente. “Ele não precisava fazer isso. Já ia ganhar muito dinheiro com qualquer outro cliente, porque é muito bom no que faz”, lamenta um antigo colega de investigação na Lava Jato.
Mas sua saída não passou sem protestos na lista de e-mail do Ministério Público Federal. Na mensagem de despedida, Miller dizia que abandonava a carreira de procurador por uma “aposta” e que aceitava “os riscos”. “Como em toda aposta, não há garantias. Mas, também como em toda aposta, há oportunidades. E há também, nesta aposta em particular, alguma clareza sobre os riscos. Estou aceitando esses riscos: na balança entre garantias e oportunidades, percebi com clareza estar arbitrando mental e emocionalmente em favor das oportunidades. É o indicativo mais seguro de que a hora é mesmo de partir”, disse Miller ao se despedir dos colegas. Horas depois do e-mail de Miller, o procurador regional Artur Gueiros enviou mensagem à mesma lista, destinada a todos os procuradores do país, com críticas à saída, pelo “grau de vulnerabilidade do MPF frente às forças do mercado”, capaz de colocar em risco segredos estratégicos dos procuradores na Operação Lava Jato. Mesmo sem saber que Miller se aliaria a Joesley, Gueiros parecia antever problemas para o Ministério Público.
“Na minha muito humilde opinião, impressiona-me o grau de vulnerabilidade do MPF frente às forças do mercado, em particular diante de caso de extrema gravidade, como as estratégias da Instituição no impactante Lava-Jato. Se é certo que não existe quarentena para pedidos de exoneração, creio que o Conselho Superior (ou o CNMP) deveria refletir sobre fatos como o que ora é exposto para nós da Rede Membros. Falar mal de Jucás e rocambolescos estancamentos de sangria (além de outros fatos menos púdicos), parece ser mais fácil do que olharmos para o nosso pp umbigo e lamentar circunstâncias onde o poder econômico, muito bem estudado desde Sutherland, atua, captura, se apropria de know-how, deixa, enfim, um enorme flanco a descoberto no mui querido MPF...Enquanto isso, nós outros, procuradores e procuradoras, ficamos compelidos a ridículas políticas de trocar senhas do computador de tempos em tempos, como se isso fosse eficaz para proteger nossos segredos profissionais...Muito complicado, repito, na minha humilde opinião”, disse Gueiros em mensagem obtida pelo EL PAÍS.
Procurado por este jornal, Miller não quis comentar. Um assessor de imprensa divulgou o posicionamento do ex-procurador. “Marcello Miller tem convicção de que não cometeu qualquer crime ou ato de improbidade administrativa e informa que está à disposição das autoridades para prestar todos os esclarecimentos”, diz o comunicado. Miller jamais respondeu à crítica do colega no grupo de e-mail do Ministério Público Federal.
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