Meu tardio 1º dia dos pais
Irene já sacou: papai não é um “homão da porra”, como se diz com nostalgia de príncipe encantado
Irene ri da falta de habilidade do pai no momento de colocar o lacinho (um lacinho já pronto) nos seus cabelos, mas o papai não desiste. Irene ri do seu avohai, avô e pai, tentando fazê-la ouvir uma música chique ou cabeça, mesmo sabendo que a pequena só vibra com a ingênua sacanagem de “Papai eu quero me casar”. Falo da trilha original do pastoril do Velho Faceta, na voz do Didi Mocó e sua trupe. “Ô minha filha, você não casa bem...”
Irene já sacou tudo: papai não é um “homão da porra”, como se diz com alguma ironia e um naco de nostalgia de príncipe encantado. Mas papai dá para o gasto, é o que tenho, minha gente, papai ainda dá um caldo – depois de seis meses apenas no peito da mamãe, é hora da sopa afetiva com receitas da Cratóvia, a mistura do Crato paterno e da matriz materna polonesa. Isto não é um aviãozinho, filha, é uma colher com a iguaria dos deuses, toma... Irene perplexa: ué, papai resolveu não mentir mais, que passa?
Papai de primeira viagem às vezes é meio Felícia – lembra daquele desenho infantil? – e aperta demais, ama demais, sufoca demais sua gatinha. Irene suspira. Sorte que tem o Teo, meu enteado de 9 anos, que imprime um ritmo mais adulto e correto na parada. Isso é que é irmão, ufa. Papai destrói a cartilha de Piaget a cada iniciativa, papai não folheou sequer “A vida do bebê”, do doutor Rinaldo de Lamare. Papai é muito free-jazz.
Para completar, papai não me larga, e quer me fazer dormir na rede cearense, como foi na vida lá dele ao relento. Ainda bem que me adaptei fácil, com o papai sou meio Zélig, finjo que estou amando qualquer coisa, me transformo. As canções de ninar, só rindo, são uma comédia. Meu avohai mistura, do nada, “Noite Feliz” com o “Cocoricó”, tudo em compasso de axé de raiz ou de lambada. Chorando se foi... Às vezes fecho os olhos e finjo que durmo. Só assim tenho paz.
Irene ri da cara de dor que o papai faz na hora da vacina. O moço do posto aqui da Turiassu tira onda. Papai fica muito sério e nervoso quando me leva ao médico. Papai praticamente não deixa eu sair sozinha com a mamãe, mal sabe como a gente curte e anda mais relax. Papai pede que o rapaz do táxi ande a 20 por hora, papai diz “que coisa boa, sorte esse trânsito engarrafado de São Paulo”, acho que o papai é meio paranoico, mas é lindo, é o que tenho, papai não é assim “um homão da porra”, já disse.
Outra loucura do meu avohai: o medo do vento. Uma brisa do Sumaré, SP, vira quase o assombroso inverno do Game of Thrones. Papai diz que é coisa dos seus velhos, meus vovôs do Cariri, que vedavam os vãos das janelas temendo os ventos frios de agosto na chapada do Araripe. Papai e suas crendices, respeito. Espero que ele saiba que sou uma mina eclética, além da sacanagem do Faceta/Trapalhões, sei que o tio Bob Dylan me ensinou coisas: “The answer, my friend, is blowin' in the wind/ The answer is blowin' in the wind”.
E não sei se vocês sabem, aguento o meu papai-Felícia 24 horas, depois que nasci ele só sai de casa na segunda-feira – mesmo assim fica me mandando mensagens lá de dentro do tubo da televisão... Nessa moleza caseira toda, ele ainda diz que trabalha, como se escrever fosse tarefa de Hércules, e olhe que só escreve crônica. Punk-rock mesmo é a mamãe, ora bolas!, como segura o rojão essa mamãe-coragem.
Irene ri nesse primeiro dia dos pais no meu calendário. Irene lembra, irônica, que o avohai se apegava um pouco ao mantra infértil do meu mestre Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.” Que bobagem, tenho a ti, que riqueza, que tesouro, meu rei Salomão, que viagem.
Qualquer dúvida, consulte o vento ou as folhas das folhas da relva, filha, de tanto te amar papai já não sabe de mais nada a essa altura. Nem o resultado do futebol de quarta-feira.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Os machões dançaram -crônicas de amor & sexo em tempo de homens vacilões” (editora Record). Comentarista nos programas “Papo de Segunda” e “Redação Sportv”.
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