A fogueira da modernidade
São João ao som do sertanejo universitário incomoda muita gente. Aproveito e conto sobre o dia em que conheci Gonzagão, eita diabo!
“Ah, o São João do Nordeste não é mais o mesmo, uma invasão da peste da tal música sertaneja, sertanejo universitário, que para mim não passa de sertanejo analfabeto, sertanejo mobral, isso sim”, blasfema Teotônio Rodrigues, de Campina Grande, Paraíba, em queixa aberta a este cronista de costumes. “É uma fuzarca qualquer, uma micareta, sei lá que nome dá a isso”.
De Caruaru, Pernambuco, concorrente de Campina na gincana megalô da maior festa junina do mundo, o primo Fernando Flávio Menezes tem barulho, quase um bacamarte verbal, semelhante: “De São João isso aqui só tem o nome. Pode chamar de tudo, menos falar em nome da velha festa da fogueira, isso aqui agora é micareta, carnaval fora de época, fuleragem escalafobética, vaquejada ´universotária´, festival de Barretos...” Vou poupar o civilizado leitor dessa coluna do surto selvagem, lampirônico e antropológico, do parente do agreste.
E assim, entre amigos, familiares e artistas da região, o alarme crítico tem sido o mesmo nos últimos anos. Muito antes do dito sertanejo, a revolta se deu com o domínio do axé ou do forró eletrônico ao estilo “Aviões” e “Mastruz com Leite” etc, para citar as bandas mais antigas. E o debate não ficou restrito apenas às maiores festas. O Nordeste inteiro se divide entre a tradição do forró pé-de-serra, que tem em Gonzagão a sua matriz estética, e a modernidade comercial recente, com a música modinha a cada safra.
Com cachês milionários bancados com dinheiro público e o auxílio de marcas de cervejas, prevalecem as farras com os Wesleys Safadões de cada temporada. Vale a celebridade do momento. Este ano, o sururu é com a turma breganeja. Rendeu até cordel e a campanha Devolva Meu São João, liderada por sanfoneiros nordestinos que perderam espaço ao longo da história.
Peleja antiga
A peleja da festa tradicional e das modernices não é de hoje. O jornalista e crítico de música José Teles, do “JC” do Recife, lembra que ainda em 1991, a prefeitura de Caruaru bancou shows com Chitãozinho & Xororó, Beto Barbosa e Luiz Caldas. Aí já estavam o sertanejo – ainda sem diploma universitário, ufa! –, o então rei da lambada e o axé baiano. Quem desejar ter uma ideia da evolução deste embate é só buscar os textos de Teles nos arquivos do Google. Recomendo.
O modelo de Caruaru e Campina Grande foi imitado, de certa forma, por municípios mais pobres, o que compromete mais ainda os orçamentos. Há cidades grandes, como Arcoverde (PE), por exemplo, que conseguiram, na soma das últimas duas décadas, um destaque nas festas juninas por não caírem no conto da modinha. Haja coco de roda e forrobodó na latada.
Este humilde cronista, fã de Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Azulão, Assisão, Trio Nordestino Josildo Sá (pior que nem é nepotismo dos oito baixos!) e recomenda as rotas de fugas para sítios, distritos e pequenas cidades que estão redescobrindo o valor da fogueira mais flamejante. Alô meu Cariri, perdi o São João, mas estou chegando para apresentar Irene às brasas bonitas e finais do São Pedro. Não vejo a hora.
O dia que vi Gonzagão
Aproveito o xaxado e repriso aqui uma pequena lembrança que já publiquei em blog e livro, eita, em busca do pequi sentimental perdido, sempre vale:
Aí lá vem o negão todo jeitoso descendo as escadas rolantes das Casas Pernambucanas, as primeiras escadas rolantes que subi na minha vida, o negão todo paramentado, camisa mais psicodélica do que toda a estampa dos ácidos da Califórinia.
Minha mãe me cutuca e diz: “Luiz Gonzaga, meu filho”.
Ele escuta e replica:
“Respeite sua mãe, leia cartilha e livro e, se der tempo, escute minhas modas, caba do olho de bila”.
Parece que foi hoje.
Juazeiro do Norte, sul do Ceará, cidade vizinha do Exu, anos mil novecentos e setenta e nada. Fiquei com aquela ideia fixa balançando no trapézio da memória feito o doidim do emplasto de Machado de Assis.
Daí, depois, foram tantas loas. Sempre gostei das mais tristes. Talvez por causa da maior lição estética que recebi na vida. Não do mestre Ariano Suassuna, meu professor de tal disciplina por pouquíssimo tempo na UFPE, mas de dona Maria do Socorro, a santa que me mandou ao mundo:
– Meu filho, num escreve coisa tão alegre assim não. O mundo gosta é de chorar riachos, nem que sejam riachos que nunca passaram aqui por dentro – levava a mão ao lado esquerdo do peito, justamente ela cuja origem era o riacho do Navio, Floresta, Pernambuco.
Como esquecer tamanha lição de vida, seu Luiz? Nem o jumento, nosso irmão, é capaz de tamanha desfeita.
O jumento é uma ciência.
E soubeste, Gonzagão, que agora estão judiando deveras do bichinho? Será a inveja do pênis, seu Lua, da qual falava um gênio mais ou menos assim do teu porte, o velho Sigmund?
Uma cidade tange o jegue pra outra. O sertão que expulsa os cardãs só quer saber de moto, barulho e velocidade. Tem até um plano para levar os jumentinhos que carregaram Jesus Cristo para virar jabá na China de Mao Tse-Tung. Pense!
É, seu Luiz, o Nordeste melhorou muito com teu xará Lula, muitíssimo, tem até mais gente regressando do que na pisada da triste partida, mas continua injusto e descuidado. Até a seca resolveu chover no molhado e dar as caras de volta.
E chega de nove horas. Hoje é dia de festa. A família do meu avô paterno, que desceu lá do Exu para o Crato, agora mesmo faz o caminho de volta. Viva teu centenário, volte e meta a cuia no fundo do pote mais antigo, timbungo, timbungo, é hora de ouvir um dos maiores blues de todos os tempos, assum preto, olhos furados para cantar melhor, assim seja.
Falemos das músicas de amor. Aprecio. Karolina com K. É o maior fungado onomatopeico da história. Consegue bater o Gainsbourg e a Bardot na gemedeira do Je t´aime moi non plus.
A todo mundo eu dou psiu…
Olha pro céu meu amor, vê como ele está lindo.
Tu que andas pelo mundo, sabiá…
Xanduzinha, meu xodó, bela prosódia que lembra chamego no cabaré de Glorinha, no Crato. Reza a lenda que autobiográfica.
E Orélia, amigo Otto Maximiliano, que achas? É a fraca!
Agora a que eu mais amo, seu Luiz: ai se eu tivesse asa, ainda hoje eu via Ana…
Légua tirana. Faixa do tempo em que os homens faziam um estirão a pé e recebiam o maior presente da existência: os zolhinhos vesgos e marejados de uma mulher dizendo que havia sentido na vida.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Chabadabadá: aventuras e desventuras do macho perdido e da mulher que se acha (editora Record).
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