“República de Curitiba” do futebol se rebela contra o sistema da bola
Clubes da capital paranaense unem forças para enfrentar Globo, CBF e federações “Somos referência em ética e moral”, diz Petraglia, homem-forte do Atlético-PR
Abrigar as investigações da operação Lava Jato fez a capital do Paraná reconhecer-se orgulhosamente como "República de Curitiba" por uma parte de seus habitantes. Mário Celso Petraglia e Rogério Portugal Bacellar, dirigentes de Atlético-PR e Coritiba, aproveitam o termo designado à cidade no que seria uma ironia do ex-presidente Lula (a expressão foi captada nos grampos divulgados pelo juiz Sergio Moro) para tentar fazer aquilo que entendem como justiça no mundo da bola. Rivais em campo e parceiras nos bastidores, as equipes paranaenses compraram juntas a briga contra Globo, CBF e o status quo das federações. "Seria bom se fôssemos reconhecidos com essa expressão também no futebol", afirma Petraglia ao EL PAÍS. Embora não exponha suas opiniões em outros âmbitos além do esportivo, Bacellar ressalta o posicionamento de seu clube: "O Coritiba sempre lutou pelo futebol paranaense e o brasileiro. Queremos que seja mais justo e igual. Fomos, inclusive, o primeiro clube a se posicionar contra a lavagem de dinheiro no futebol."
A dupla Atletiba, como é conhecido o embate entre os dois rivais, protagonizou um marco nas transmissões do futebol brasileiro, ao recusar os valores de cotas televisivas propostos pela RPC (filiada paranaense da Globo) para o campeonato estadual, e disponibilizar os três jogos entre Furacão e Coxa - um no primeiro turno da competição e as duas finais - exclusivamente pela internet, via Facebook e Youtube. Foi a primeira vez, no Brasil, em que uma final foi transmitida apenas na web. Os resultados, para Petraglia, foram "espetaculares, até porque competimos, nas finais, com outras decisões de importantes estaduais por todo o Brasil, e transmitidos pela TV aberta". Da mesma maneira enxerga o presidente do clube alviverde. "[A audiência] foi além das expectativas, acima da média da própria emissora (RPC). Foi um sucesso", afirma Bacellar.
O principal motivo da recusa em negociar foi o valor oferecido pela emissora. "Ano passado, foram oferecidos 2,2 milhões de reais para o Coritiba e a mesma quantia para o Atlético. Desta vez, a proposta foi de 1 milhão para cada. Eles (RPC) têm de colocar a mão na consciência da próxima vez", afirma o presidente do Coritiba. Petraglia complementa: "Depois de recusarmos, estávamos vendo outras formas possíveis, e a Globo disse que nos esperaria, mas fomos pegos de surpresa quando fecharam com os outros dez clubes da primeira divisão do [Campeonato] Paranaense sem as partidas do Atlético e do Coxa. Os times menores precisam de dinheiro, então ofereceram quatro milhões como um 'cala-boca' e tiveram que aceitar." Desta forma, com exceção aos três Atletibas, nenhum outro jogo das duas equipes foi transmitido.
Petraglia:
Muitos dirigentes querem comer o queijo dos outros, quando o certo é produzir mais queijo
Muitos são os pontos em que os dois dirigentes concordam, entre eles o formato do Campeonato Brasileiro e a divisão de suas cotas televisivas. Atual presidente do Conselho Deliberativo, ex-presidente e nome influente no Atlético, Petraglia considera que o exemplo a ser seguido seja o da Premier League. "Meu sonho é que o Brasil tenha um formato parecido com o do [Campeonato] Inglês: liga independente, com divisões de cotas mais justas. O problema é que tem muito dirigente querendo comer o queijo dos outros, quando o certo seria produzir mais queijo." No Inglês, 50% do dinheiro das cotas são divididos igualitariamente entre os 20 clubes, 25% baseados nas performances, ou seja, posição na classificação final da edição anterior, e os outros 25% variáveis, distribuídos proporcionalmente pela audiência.
Coritiba e Atlético têm, ao lado de Santos, Palmeiras e Bahia, contratos com o Esporte Interativo, do grupo Turner, para a transmissão do Campeonato Brasileiro. De 2019 a 2024, seguirão, com a emissora, com uma divisão de cotas iguais às do Campeonato Inglês, como conta Petraglia. "É bem diferente do que a Globo propõe, que é 40, 30 e 30 para as tevês aberta e fechada. Para o pay-per-view, então, é pior ainda: dão 40% para Corinthians e Flamengo, e os 60% restantes para os outros 18 times", afirma o dirigente de 73 anos, que ainda garante as prováveis chegadas de São Paulo e Internacional ao que chama de G5 - grupo de clubes com contrato com o EI -, que poderá se tornar G7, segundo ele. Bacellar também se incomoda com as divisões de cotas televisivas no país: "Daqui a pouco vamos virar uma Espanha, que só tem dois clubes disputando o título."
A tal espanholização do futebol é um fator de desequilíbrio que abre um fosso entre os grandes times e os menores, afetando a sustentabilidade financeira das equipes, influenciando inclusive os resultados dos campeonatos. O assunto é polêmico também na Espanha, onde Real Madrid e Barcelona capitalizam todas as cotas, ao seguir uma divisão de recursos similar ao do Brasil. Mas, vêm afastando público espanhol, o que também tem gerado um movimento de reação para que as regras se pareçam mais com a do campeonato inglês, onde a diferença de recursos entre os times grandes e pequenos não é tão desproporcional.
Bacellar:
Se deixar o futebol daqui seguir assim, vamos virar uma Espanha, só com dois clubes disputando os títulos
Segundo levantamento do site Jota, entre 2012 e 2015, Flamengo e Corinthians receberam 110 milhões de reais por ano em cotas televisivas, enquanto clubes menores receberam entre 15 e 20 milhões de reais. Nos contratos entre 2016 e 2019 , a diferença deve crescer ainda mais. No ano passado, Corinthians e Flamengo receberam 170 milhões de reais, e os menores, 20 milhões.
Uma das tentativas para se opor à divisão de cotas da emissora carioca foi a Primeira Liga, competição criada em outubro de 2015. Atlético e Coritiba estiveram entre os principais idealizadores do formato. "Nós pensamos em tudo e, inclusive, fomos o clube a organizar e convidar as equipes do Rio Grande [do Sul] e de Minas [Gerais] para a primeira reunião", conta Bacellar, que afirma ter deixado o campeonato porque "os clubes do Rio Grande, de Minas e do Rio [de Janeiro] pediram cotas maiores, e isso ia contra o que pensávamos." Petraglia aponta que "a Globo passou a valorizar os estaduais para enfraquecer a [Primeira] Liga, e os clubes caminharam com isso".
Sobre o calendário do futebol brasileiro, também compartilham opiniões similares: "Absurdo, esdrúxulo, sem sentido. Devia estar adaptado ao europeu, começando em agosto e terminando em maio. Eles (clubes europeus) estão no fim da temporada e começam a contratar jogadores daqui para a próxima. Nós perdemos esses atletas no auge dos nossos campeonatos. Isso é definido pelas federações e pela televisão, e vai de encontro aos interesses de quem faz o futebol, que são os clubes", afirma Petraglia. Bacellar também não poupa críticas: "É organizado pela CBF, mas com uma influência muito grande da Rede Globo. Depende da grade de programação deles. Isso é prejudicial até para os torcedores, que, às vezes, têm de sair do estádio quase no começo da madrugada, e, assim, sofrem com a insegurança na volta para casa."
A busca pela evolução do futebol brasileiro, para eles, deve contar com a participação dos jogadores. O presidente do Coxa afirma que "os atletas têm que ser mais ouvidos, pois a legislação é desatualizada. A Lei Pelé precisa ser modificada e muito melhorada. Foi criada para ajudar os jogadores e os clubes, mas acaba ajudando os empresários de atletas, que nos fazem reféns, e as federações regionais e a CBF também se enriquecem com isso". O dirigente do Furacão considera que a participação dos jogadores seja "muito importante, determinante. Quem faz o futebol são eles. São a metade da laranja, o espetáculo. Gostaria que o movimento continuasse sem interferência de outras instituições". Ele se refere ao Bom Senso FC, movimento criado, em setembro de 2013, entre outros atletas, por Paulo André, atualmente zagueiro do Atlético-PR, e Alex, ex-jogador e ídolo do Coritiba, para lutar por melhorias e o desenvolvimento do futebol no Brasil. Por falta de recursos humanos e financeiros, porém, o Bom Senso encerrou suas atividades em julho de 2016.
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