A revenda de camisinhas brasileiras como símbolo da crise venezuelana
Em Santa Elena de Uairén, na fronteira com o Brasil, qualquer lugar vira um minimercado onde se vende de arroz a preservativos obtidos gratuitamente em Roraima
Em uma ponta de Santa Elena de Uairén, cidade venezuelana que faz fronteira com o Brasil, a instrutora de dança Teresa González, 28, montou uma pequena banca. Ali, ela vende pó de café, açúcar, medicamentos, sabão em pó, macarrão e sabonetes. Parte desses produtos são brasileiros, comprados a um preço mais baixo do outro lado da fronteira na cidade de Pacaraima, em Roraima. "O macarrão não, porque o nosso macarrão é melhor", diz, orgulhosa. Mas o preservativo, sim. Por 1.500 bolívares (cerca de 1,40 reais), é possível comprar uma unidade do pacotinho roxo com o símbolo do Ministério da Saúde brasileiro e os dizeres "venda proibida". "Eu não vendia, mas tem um hotel aqui na frente e sempre vinha gente perguntar se tinha", conta Teresa. "Aí eu vi gente distribuindo em Pacaraima, peguei e coloquei à venda".
Na banca de Teresa, montada de improviso na calçada do outro lado da rua onde mora, há uma máquina de contar cédulas de dinheiro. O que não significa que a professora de dança lucra muito com o que vende. Essas máquinas são um item básico em Santa Elena, cidade com cerca de 30.000 habitantes, a mais de 1.200 quilômetros de Caracas. A inflação é tamanha que para comprar um saco de pó de café produzido na Venezuela é preciso desembolsar 80 notas de 100 bolívares.
Na noite anterior, a caixa de um bar pesava pequenas pilhas de notas para conferir o pagamento da conta. A balança faz as vezes do contador de cédulas, do mesmo jeito que bolsas e mochilas substituem uma carteira. Não há espaço num bolso de calça para levar as cédulas suficientes para tomar umas cervejas no final do dia. Para pagar a conta de um almoço para quatro pessoas em um restaurante, foram deixadas quatro pilhas de cédulas sobre a mesa para somar os 87.000 bolívares da conta. Cerca de 21,75 reais por pessoa.
Perto dali, num supermercado administrado por chineses, um homem carregava um balde enorme, desses de lixo, no ombro. Levava até uma sala e voltava com ele vazio para o caixa, onde a atendente contava as notas na máquina e as colocava no balde, enchendo o latão novamente. Não há espaço no caixa para tantas cédulas.
No final do ano passado, o presidente Nicolás Maduro anunciou que tiraria de circulação as notas de 100 bolívares para tentar frear o aumento do dólar norte-americano no mercado paralelo. A escassez de cédulas provocou diversos protestos no interior do país e ao menos uma pessoa morreu. As notas seguem circulando, valendo cada vez menos.
Nas ruas, centenas de carros formam filas quilométricas diariamente para abastecer o tanque. Assim como a comida, a gasolina também é mercadoria negociada. Muitos dos que estão ali na fila compram o combustível para revender aos brasileiros. Pagam cerca de 1 centavo no litro e revendem por 1 real, muito abaixo da média de 3,80 reais cobrados nos postos em Roraima, Estado vizinho. "Ficamos cerca de doze horas na fila", contou o taxista Julio César Gamboa. Ainda assim, diz que vender a gasolina é mais vantajoso que trabalhar como taxista. "Geralmente eu ganho mais com a gasolina", disse.
"As pessoas não têm medo de enfrentar o Governo", diz o taxista Hernan Medina. "A fome não tem medo"
A demanda pelo combustível é tamanha que os dois únicos postos de Santa Elena se dividem: Um, só atende carros com placas com finais pares, e o outro, somente os ímpares. Ainda assim, é tanta gente atrás de gasolina, que cada dia da semana é atendido um número final da placa: segundas, somente as placas com final número 1, no posto que atende os ímpares, e número 2, no que atende os pares, e assim por diante. Domingo é o dia mais movimentado, já que todos os números podem abastecer, desde que respeitem aos postos dos pares e dos ímpares. "Domingo vem todo mundo que trabalha a semana inteira e não pode ficar na fila", explicou Hernan Medina, outro taxista. Na Venezuela, um lugar na fila também é mercadoria: Muitos ficam ali para vender o lugar para quem não tem tempo de esperar por até metade de um dia para abastecer.
Na fila, muitos descem do carro, tomam uma cerveja, conversam. Os carros ganham números no para-brisa para ninguém furar a vez. Muitos chegam na noite anterior e dormem ali para garantir o lugar. Julio Cesar diz que entra na fila três vezes por semana. "Hoje eu cheguei aqui às três da manhã e devo conseguir abastecer por volta das três da tarde".
O tempo gasto nas filas já faz parte da rotina do venezuelano. Hernan Media conta que passa de três a quatro horas por dia na fila da gasolina todos os dias. "Não há esperança de que as coisas melhorem", disse. Para ele, o autoritarismo do Governo Maduro não será capaz, porém, de calar a população vítima do caos social e econômico. "As pessoas não têm medo de enfrentar o Governo", diz. "A fome não tem medo".
A fome é a principal razão que tem levado os venezuelanos a cruzar a fronteira com o Brasil não somente para fazer compras, mas para não voltar mais. Chegando pelo Estado de Roraima, muitos seguem para a capital Boa Vista, onde tentam se regularizar pedindo refúgio no país. Só no ano passado, foram 2.230 pedidos só de venezuelanos. Neste ano, até o último dia 8, esse número chegava a 1.035. No início do mês, o Governo brasileiro publicou um decreto permitindo a residência temporária de até dois anos para imigrantes de países fronteiriços que não pertencem ao Mercosul, como a Venezuela.
Os talibãs da Venezuela
Aqueles que compram gasolina para revender aos brasileiros são chamados de talibaneses, explicou à reportagem a artista plástica Elizabeth Sevcik. O verbo talibanear significa vender a gasolina no mercado negro. Moradora de Santa Elena, ela está feliz. Acaba de conseguir o passaporte checo e faz os planos para ir embora da Venezuela. "As pessoas não fazem mais nada além de formar filas", disse. "Há filas para tudo. Para comprar pão há filas enormes". Ela conta que em Santa Elena não há um problema tão sério de abastecimento como há no interior do país ou em Caracas, por exemplo. Mas ela não pode ajudar quem vive em situações mais problemáticas enviando alimentos e medicamentos pelo correio. O Governo não permite. "Aqui na Venezuela, as pessoas se matam por um pote de margarina".
A margarina, por sinal, é um dos produtos buscados pelos venezuelanos quando vão ao Brasil comprar alimentos para revender na Venezuela. "Amanhã mesmo eu vou ao Brasil comprar margarina", disse a professora de dança e vendedora Teresa. Apesar das dificuldades que as pessoas passam na Venezuela, ela não pretende deixar o país. "Não quero sair da Venezuela, amo meu país. Se falta alimento, vendemos aqui", diz. "Acho que toda essa problemática é só uma questão de saber aproveitar a situação. Se falta comida, passamos a vender comida aqui".
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